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Vanessa Barbara, a líder do grupo dos macacos introvertidos

Quem acompanha as crônicas da escritora Vanessa Barbara já teve a oportunidade de aprender que existem três ruas de nomes Avestruz na Grande São Paulo. Uma delas, inclusive, fica em Perus. Também já está careca de saber que os moradores do bairro do Mandaqui, na zona norte de São Paulo, não atendem o telefone dizendo “alô”, e sim “alôncio”, seguido, claro, de uma gargalhada. Conhece também alguns ilustres moradores, como o sr. Nakamura, que sobreviveu a uma hecatombe nuclear e já tem afeto pelo sr. Eliseu da quitanda.

Figuras peculiares da zona norte, um estudo sobre os trajetos e nomenclaturas do transporte coletivo na cidade e tantas outras efemérides como o Dia do Número Pi estão reunidas no livro “O louco de palestra e outras crônicas urbanas” (ed. Companhia das Letras), que traz um apanhado do trabalho da escritora publicado em jornais como Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, revista Piauí, Brasil Econômico, entre outros.

A linguagem prosaica e bem humorada, entretanto, não é privilégio das crônicas. No final de 2013, a autora publicou o romance “Noites de Alface” (ed. Alfaguara), em cujo agradecimento, ao final do tomo, enfatiza: “Ao dr. André Maame Cafagne, pela consultoria em questões psiquiátricas e efeitos colaterais dos medicamentos (...) Aos carteiros mandaquienses Vitor “Gigante da Silva e Joelison Santos de Oliveira.”

Isso porque o romance tem como protagonistas um casal de velhinhos, Ada e Otto, e a história começa a ser narrada depois do falecimento dela, quando Otto se vê cercado de memórias na casa amarela e tem que lidar com os vizinhos curiosos, como um farmacêutico que sabe de cor e salteado os efeitos colaterais dos remédios ou o carteiro que raramente entrega as correspondências aos destinatários corretos. É como se os personagens já conhecidos das crônicas do Mandaqui ganhassem um tapa ficcional e fossem transportados para a vizinhança de Otto.

Durante a entrevista, não é difícil perceber de onde ela tira tantas curiosidades para alimentar os textos. “Peguei gosto pela leitura por influência da minha mãe. Por causa dela é que aprendi a ser uma leitora onívora, meio curiosa com tudo, do tipo que pega pra ler um Almanaque Globo Rural de 1979 só pra ver como é. Hoje nem acho que leio tanto assim, houve épocas em que lia muito mais. Mas eu durmo muito, isso sim é que ocupa grande parte da minha vida social”.

Introvertida, ela conta que às vezes precisa recarregar as baterias sozinha. “Assim como para qualquer introvertido, estar com pessoas é extremamente cansativo, sobretudo porque você realmente se dedica a elas”. E a timidez também ajuda na escrita, na ficção, diz. “Você acaba ouvindo muito mais e observando melhor. Tem uma pesquisa que diz que macacos introvertidos passam muito mais tempo examinando o grupo do que participando dele, absorvendo em um nível mais profundo as leis da dinâmica social. Acho que eu sou esse tipo de macaco. Eles podem até passar um tempo catando piolho uns dos outros, mas precisam ficar mais sozinhos”.

Além de fã do Gustave Flaubert e de O Grande Gatsby, Vanessa é dona de três tartarugas de água doce, Napoleão, Jacinto e Moisés (esta última adotada da vizinha), e acha que a coisa mais chata da literatura hoje em dia são as noites de autógrafo. Já foi preparadora de textos, é tradutora, jornalista e atualmente assina uma coluna no International New York Times. Em 2013, foi selecionada pela Revista Granta para a edição “Os melhores jovens escritores brasileiros”, que incluiu o início de Noites de Alface. Na entrevista, feita por escrito, como ela gosta, contou mais detalhes do seu trabalho:

Qual é a parte mais difícil de se escrever sobre o cotidiano, sobre a rotina?

Vanessa. Encontrar coisas diferentes para dizer, fugir dos clichês. Também procuro fugir do sentimentalismo, das lições morais, da “coitadização”. Na maioria das vezes, a pobre coitada da história sou eu. Adoro quando eu venho com uma imagem preconcebida, faço uma pergunta idiota e a pessoa me bota no devido lugar.

Recentemente você contou no blog (http://www.hortifruti.org/) que ficou sabendo que seu buquê de casamento faz parte agora do acervo permanente do Museu dos Relacionamentos Malogrados, na Croácia. No post, você conta a história do fim do seu casamento. É possível ficcionalizar em cima desse tipo de situação?

Vanessa. Não só é possível como é necessário. Acho que é uma forma de sair da posição de vítima – aquela pessoa a quem coisas ruins aconteceram – e fazer alguma coisa com isso, criar outra coisa a partir das experiências.

A tradução te ajudou de alguma forma na escrita?

Vanessa. Acho que tradução é uma das coisas que mais podem ajudar na escrita, inclusive no processo de encontrar um estilo próprio... Ao traduzir para o espanhol os contos de Poe, Julio Cortázar disse que tinha a impressão de “estar apreciando o tecido pelo avesso”. O tradutor penetra profundamente na máquina de elaboração dos textos, vê como foi feita a costura, aprende o estilo e o ritmo... É uma oportunidade ótima. Também Machado de Assis conta que fez um exercício literário ao traduzir Poe, um esforço para encontrar no próprio idioma afinidades de ritmo frasal e intelectual com a obra original. Você aprende os macetes do autor, os procedimentos de linguagem.

Em “O louco de palestra e outras crônicas cotidianas”, há textos que ficaram muito famosos, como o que dá nome ao livro. Como você acha que se dá essa empatia entre os leitores e determinados textos?

Vanessa. No caso da crônica sobre o louco de palestra, imagino que muita gente se identificou com o protagonista – não tanto porque todos já testemunharam um desses loucos em ação, mas porque todo mundo tem um desses dentro de si. A mesma coisa aconteceu com “O mandaquiense”. Muita gente que nem sabia que Mandaqui é um bairro veio dizer: “tenho certeza de que sou mandaquiense”.

Ainda sobre os leitores: você acha possível que uma parte deles não entenda o senso humor ou a ironia presentes ali?

Vanessa. Sempre... Ironia é uma das coisas mais difíceis de se fazer em textos. Não só porque muita gente pode entender tudo errado, mas também porque é difícil acertar o tom. Por exemplo: escrevi um artigo para o New York Times meses atrás e fui absolutamente massacrada pelos leitores, que realmente acharam que eu estava defendendo a corrupção, os acidentes de trabalho e o superfaturamento. Nesse caso, existe uma parcela de culpa de quem lê e outra de quem escreve – eu certamente não soube me expressar com a estridência necessária para caracterizar o sarcasmo, talvez porque estava escrevendo em inglês e para pessoas de culturas diferentes da minha. Mas isso acontece sempre no Brasil, então vai entender. Na dúvida, teríamos sempre que seguir o conselho do Luis Fernando Verissimo e botar o aviso: “Atenção: ironia”.

Como jornalista e escritora, você também já andou pelo jornalismo literário. Alguns colegas do jornalismo convencional não gostam desse termo. O que você acha?

Vanessa. Adoro jornalismo literário, embora não trabalhe mais nisso. Gosto muito de ler grandes reportagens e livros clássicos da área – Gay Talese, Joseph Mitchell, John Hersey, Truman Capote. Ainda assino a New Yorker. Entendo que possa existir uma rixa entre os estilos, mas deve ser porque o jornalismo literário mal feito é realmente pavoroso, dá pra ver o sujeito tentando se esforçar pra deixar o texto bonito e fracassando ruidosamente. Ou tentando criar um suspense sem ter dados suficientes, enfim... Um bom jornalista pode escrever do jeito que quiser e fará um bom trabalho; um mau jornalista se dá mal da mesma forma, mas quando tenta “enfeitar” dá muito mais na cara. Acho que é inclusive um equívoco sobre o jornalismo literário: não é uma técnica de enfeite, pelo contrário. É um jeito de poder contar a história da melhor maneira que você puder, com mais liberdade.

Como está sendo a experiência de escrever para o The New York Times International Daily? É você quem escolhe os temas?

Vanessa. Sim, tenho liberdade para escolher os temas, mas às vezes minha editora sugere alguma coisa. Para mim o mais difícil é escrever em inglês – é como ter que começar tudo de novo: encontrar um estilo próprio, um ritmo, um vocabulário específico... mas é mais que isso, porque a dificuldade vem de lá de baixo, desde concatenar direito as ideias até encontrar uma forma de pensar direto numa língua estrangeira. Desde o início, me impus uma disciplina muito específica na hora de escrever para eles que consistia em duas coisas: primeiro, abordar assuntos verdadeiramente relevantes, porque a oportunidade era única. Segundo, não entrar em pânico.

O que você lê hoje em dia e como busca novos livros/autores?

Vanessa. Como não preciso ler por obrigação (não sou editora, por exemplo), gosto de ir escolhendo o que me dá na telha. Às vezes leio algum artigo interessante, por exemplo, na seção de opinião no New York Times, aí vou atrás do autor e começo a me interessar por ele. Outras vezes vejo que o assunto me diz respeito, ou alguém me fala algo interessante sobre um livro, enfim. Não gosto de ler só porque o autor ganhou um prêmio ou está em evidência, ou porque é amigo de um amigo, acho chato e acabo pegando birra. Aliás: é tão legal poder pegar birra de um livro ou de um autor – mesmo quando você gosta deles. Peguei uma birra bem específica com o jeito de escrever do Ian McEwan, e gosto dos romances dele. Às vezes jogo o livro longe, falo mal dele pros outros, aí uns anos depois retomo a leitura e acho bom. É um caso típico de “Louca de leitura”.

Quando você escrevia para o blog da Companhia das Letras um post gerou polêmica por causa das suas declarações sobre as preferência por esse ou aquele escritor. A editora chegou a colocar uma observação que a opinião expressa ali não a representava. Você acha que o mundo está mais conservador, as pessoas estão expondo menos suas opiniões?

Vanessa. Meu texto dizia mais ou menos o que escrevi na resposta anterior... nada além disso. Acho, sim, que as pessoas andam muito covardes e morrem de medo de desagradar os outros, provavelmente porque não desejam perder o status ou os privilégios que têm junto a alguns grupos. Prova disso é que ninguém se posiciona politicamente. Aquele asterisco me fez parar de escrever para o blog.

Você tem planos de sair do Mandaqui? O estoque de histórias por aí já se esgotou ou ainda há o que explorar?

Vanessa. Sim, tenho planos de sair do Mandaqui, me faltam é condições. Em todo caso, o Mandaqui é inesgotável. Você precisa fechar bem as janelas e nem assim fica livre das intervenções dos locais. Outro dia eu estava de pijamas e veio um vizinho só pra me contar o nome e as características físicas dos seus oito gatos, e eu tive que pegar um papel e anotar – isso será utilizado posteriormente em textos sobre a máfia felina da minha rua. (Um beijo para o senhor Didi.)

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