← Voltar Publicado em

Tainhas, partituras & outras bonitezas

A Glória é centenária. O corpo talhado no garapuvu traz algumas marcas do tempo que revelam a longevidade. Os olhos se demoram ao percorrer seus onze metros de casco branco e listas verde bandeira que enfeitam a borda superior e encontram no meio do caminho pinturas cor de carmim. Nasceu no norte da ilha, mas fez morada no sul e conhece cada quebrada das ondas do Campeche. Ainda entra no mar apesar das tainhas terem diminuído, como disse o seu Getúlio, mas ela está lá, cumprindo sua função diária de trabalho e resistência.

Sua casa é ali na areia mesmo. Passa as noites no rancho de pesca escutando o mar subir e esperando ele voltar até que se clareia o dia e é hora de mais um arrastão. Hoje é seu Getúlio quem capitaneia a Glória, mas ela aprendeu a lida pelos braços do seu Deca, pai de Getúlio, há um bocado de anos.

A família do seu Deca foi uma das primeiras a povoar o Campeche, bairro do sul da ilha de Florianópolis. Descendentes de açorianos, a família chegou ao Brasil, se instalou parte no Retiro da Lagoa, parte no Campeche, e passou a viver de pesca, agricultura e caça, num tempo em que a prática ainda era permitida, como lembra o seu Getúlio.

Esguio, com olhar miúdo entalhado na cabeça sempre altiva que limita seus cerca de 1m85, ladeados pelos cabelos brancos e a pele morena com marcas do sol e do sal, seu Getúlio fala pausadamente, relembra as histórias da família numa cadência de marola. A feição faz lembrar um outro apaixonado pelo mar – Paulinho da Viola - e o tom da voz faz parecer que a qualquer momento ele vai parar de relembrar o passado e o compasso manso da voz cantarolar “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar / É ele quem me carrega como nem fosse levar /É ele quem me carrega como nem fosse levar”.

A pesca não é a única herança familiar na vida de seu Getúlio. Em 1998, ele se aposentou da Base Aérea Militar, onde era músico. Foi com o pai, seu Manoel Rafael Inácio, conhecido como Deca nas redondezas do Campeche, que ele passou a interessar-se pela magia das notas musicais. Além de pescador, seu Deca tocava sanfona nas festas dos aviadores franceses que passaram pela ilha entre as décadas de 1920 e 1930. Na época, havia uma linha do correio aéreo entre Paris e Buenos Aires e os aviadores faziam escala no campo de pouso do Campeche. Um dos pilotos, Antoine de Saint-Exupéry, que ficaria famoso mais tarde como autor do clássico O Pequeno Príncipe, virou amigo de seu Deca e até ganhou um apelido abrasileirado: Zé Perrí.

Depois da aposentadoria, o vislumbre de uma vida pacata e dias que se arrastam não brilharam os olhos do pescador. Seu Getúlio cursou Pedagogia na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) para colocar em prática seu novo projeto: passaria seus ensinamentos de música para os moradores da comunidade do Campeche. “Numa madrugada eu pensei: tenho duas profissões e acredito que daria pra ajudar pessoas. Porque esperar a morte chegar é complicado. Na hora que se estende a mão, se a gente conseguir tirar um [dessa vida sem perspectiva], já tá valendo”.

Filho de pescador, Getúlio Manoel Inácio é o único na família de catorze irmãos com curso superior. Ele conta que aprendeu ‘música escrita’ na Polícia Militar, onde tocava baixo eletrônico, saxofone, clarinete e depois se tornou maestro. O pai não sabia ler nem escrever e ele lembra que antigamente, a média de analfabetos nessa região da ilha era de 95%.

Por conta própria, seu Getúlio foi escutando e reunindo as histórias que ouvia do pai e dos moradores mais antigos do Campeche para não deixar que as palavras se perdessem no vento. Publicou “Deca e Zé Perri”, eternizando em 83 folhas de papel o episódio que está sempre vivo em sua memória: a amizade do pai com o escritor e aviador francês, que trouxe ares de desenvolvimento ao Campeche.

A música, que entrou em sua vida pela sanfona do pai, um analfabeto das letras que dominava as notas, foi o nó principal na rede do pescador, que tentava pelas mãos acostumadas ao trabalho coletivo no mar, aterrar também a ideia de comunidade entre os ilhéus.

Foi assim que a canoa Glória passou a ter companhia no rancho, rebatizado de Rancho de Pesca Cultural, que virou a sede oficial das aulas de música ministradas pelo seu Getúlio durante a semana, à noite, quando o trabalho no mar já tinha acabado.

Erguido com paredes de tábuas largas sobre um barranco de areia, o rancho é hoje um ponto de referência na praia do Campeche. Guardando sua entrada, uma árvore frondosa abre seus braços e protege as tábuas já cansadas do vento forte que sopra na região o ano todo. À noite, quando a única iluminação da areia vem dos poucos restaurantes e bares que ficam na entrada principal da praia, o som das flautas, clarinetes e saxofones é o suficiente para iluminar a vista pro mar, que parece até acalmar suas ondas para ouvir a poesia que vem do rancho.

A porta pesada de madeira fica recostada durante as aulas. Do lado de dentro, a Glória é empurrada para o canto direito do rancho para dar lugar às carteiras e aos suportes das partituras que estão notoriamente perdendo a batalha contra a maresia. Ao fundo, a capelinha de paredes brancas de cal ilumina o canto do rancho com as velas acessas e pedidos para que Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora das Graças abençoem a próxima saída para o mar.

Durante as aulas, os alunos se viram para o lado esquerdo do rancho, de costas para Glória, olhando atentamente a lousa cheia de notas e partituras fixada na parede. A primeira turma, em fevereiro de 2009, tinha 58 alunos inscritos. Foi no final de 2008 que seu Getúlio pensou o projeto com o nome de Música no Rancho da Canoa. “Eu era maestro na época numa banda da cidade e pedi uma doação de instrumentos pro presidente. Depois, com a ajuda de um projeto de um vereador, conseguimos comprar instrumentos novos e devolvemos os emprestados. Todo mundo é bem-vindo. Já tivemos cinema e capoeira no rancho também”.

Tainha & tradição 

Na casa de paredes claras e quintal espaçoso onde mora com os três filhos e a esposa, há pouco menos de 100 metros da praia, seu Getúlio vai me contando sobre as tradições da pesca artesanal, enquanto manuseia habilidosamente os fios de náilon que vão se transformando em rede de pesca depois de alguns nós.

“Mantenho as cores da canoa como meu pai usava e, também mantenho a rede, procuro ter a mesma simplicidade que eles usavam antigamente. Muita gente acha que o novo que chega que é o bonito. Eu acho que o tradicional, o antigo, também tem as suas bonitezas, então eu procuro preservar isso. Tanto que eu faço a missa pra abrir a pesca da tainha no dia 1o. de maio [antigamente, o período da tainha se iniciava nessa data]. Tem um café comunitário em que cada um que chega lá leva um pão, um bolo, uma saca de leite. Já veio ministro de pesca, governadores, até o parente do Saint Exupéry”.

O período da pesca da tainha que seu Getúlio se refere é regulamentado pelo Ministério da Pesca e Agricultura e vai de 15 de maio a 30 de julho, ao longo do litoral dos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Nessa época, os cardumes aproveitam as correntes de água fria que vêem da Antártida para subir o litoral Sul e Sudeste do Brasil, onde se reproduzem e desovam, até a altura de Cabo Frio, no Rio de Janeiro.

Segundo dados do Ministério da Pesca e Agricultura, a tainha é um dos recursos pesqueiros mais importantes do litoral desses estados e muitas famílias de pescadores ainda vivem exclusivamente desse trabalho. O comércio da carne da tainha, peixe/iguaria/espécie de sabor acentuado, é voltado para o mercado interno, e ainda se usa as ovas para exportação a países como Taiwan, França, Grécia, Itália e Espanha.

A pesca que seu Getúlio pratica é conhecida como pesca artesanal, de canoa a remo, e pode ser feita em até 800 metros de extensão mar adentro. Já os barcos motorizados tem permissão para trabalhar em até cinco milhas de extensão em todo o litoral do estado. Esses barcos utilizam recursos como o sonar para encontrar os cardumes, o que é um ponto de grande reclamação dos pescadores artesanais, que alegam que o sonar afasta as tainhas das redes. “Eles [barcos motorizados] saem a qualquer hora do dia ou da noite com o sonar e vem em cima da área daquele que trabalha a olho nu. Aí é uma competição desigual. Nós já alertamos ao Ministério... mas eles fazem leis mas não tem fiscalização”.

Em Florianópolis, a partir de meados do século 19, as principais freguesias que se dedicavam à atividade pesqueira eram Ponta das Canas, Barra da Lagoa, Canasvieiras e Campeche. A pesca artesanal era a atividade de subsistência fundamental, já que a ilha recebeu muitos imigrantes açorianos e a nova morada tinha muitas similaridades com as ilhas de Açores.

Depois que a pesca artesanal começou a perder importância, em meados do século 20, os ranchos de pesca instalados na areia passaram a representar a resistência dessa atividade tradicional, não apenas preservando a cultura mas também lutando contra a especulação do mercado imobiliário.

________________________________________________

Com 3,8 km de areias grossas e mar agitado, o Campeche ainda preserva as dunas, com áreas de vegetação de restinga protegidas por lei. Nos dias em que Em dias que o vento sopra mais forte, o céu se colore de kitesurfes e os surfistas aproveitam os vários picos de boas ondas.

Na época da tainha, as dunas ganham um outro personagem. É comum avistar no alto delas homens com o olhar fixo no mar, como gaivotas preparando o mergulho em busca do peixe.

Seu Getúlio me explica que dentro da hierarquia da pesca esses olheiros em cima das dunas são conhecidos como vigias. Eles ficam de prontidão na praia, em determinados períodos do dia, para avistar os cardumes. Assim que algum passa aos olhos, o aviso é recebido no rancho de pesca e as canoas vão para o mar. Quem não tem sonar, tem o olheiro, diz o seu Getúlio.

Depois do aviso do vigia, vem o arrastão, que é entrada da canoa na água armando a rede de pesca. Seu Getúlio calcula uma hora mais ou menos pra botar a rede na água. Ele explica que vão sete pessoas em cada canoa: cinco pra remar, um pra ‘chumbeirar’, jogar a rede na água, e o patrão, que vai comandar. Na saída da praia, a canoa deixa uma corda na areia. Entra uns 500 metros no mar, faz uma volta, num formato de U, e vai saindo d’água pelo outro lado, de forma que a rede venha puxando os peixes para a areia. Cada arrastão conta com 60, 70 pessoas, ele diz, porque há várias equipes de pescadores.

Além do proprietário, do patrão, do remeiro, do chumbereiro e do vigia, ainda tem o cozinheiro e o rancheiro, que toma conta dos pertences dos pescadores. Depois de um arrastão, os pescadores separam a cota que vai ser dividida entre cada um que participou do trabalho e o cozinheiro faz a comida ali mesmo no rancho pro pessoal.

A vida do pescador não é tomada pelo tempo cronológico, e sim pelo tempo do mar. A pesca da tainha, por exemplo, é feita desde o amanhecer até o alvorecer. Seu Getúlio entrega os macetes: “No amanhecer (a partir das 5h30, 6h) é melhor porque o peixe está parado da noite. Outro bom horário é quando a maré começa a encher, das onze horas em diante. E lá pelas 14h, quando tá bem cheia. Quando o sol tá descendo também”.

A rede que seu Getúlio começou a trançar no quintal enquanto conversávamos vai ficar pronta só em março do próximo ano. São 18 metros de comprimento por 250 de largura, tudo feito à mão, laço a laço. Na pesca artesanal, como na vida, tudo é cedo e exige paciência. Entre um nó aqui e outro ali, bonitezas vão sendo preservadas e garantem que novas redes ganhem o mar.

_____________________________________

Este perfil foi escrito no ano de 2014. Em 31 de janeiro de 2018, Seu Getúlio Manoel Inácio faleceu em decorrência de um câncer no esôfago, aos 66 anos. Ele segue no lugar que mais amava no mundo: foi enterrado no Cemitério Municipal do Campeche, que fica atrás da Igreja de São Sebastião, onde os túmulos quase encontram a areia da praia e se ouve o barulho das ondas do mar do Campeche.