
Presença, olhar e afeto: "Filhos não são um problema logístico a ser resolvido"
"Diga para qualquer homem que você quer conversar sobre masculinidade tóxica e veja a reação" - essa foi umas das primeiras frases de Lins Ricon numa conversa por email. Lins é autor do livro "Que homem" (Editora Zouk), uma espécie de manual muito bem humorado que traz dicas para homens que estão em busca desse autoconhecimento e, como o próprio autor brinca, "se tornar um marido superior".
Ainda que o nosso país carregue números inacreditáveis como os cinco milhões de estudantes brasileiros que não possuem o nome do pai na certidão de nascimento e no documento de identidade (dados do Conselho Nacional de Justiça), é notória a ampliação da discussão sobre paternidades nos últimos anos, e o crescimento de literaturas sobre o tema, sejam livros, blogs e páginas em redes sociais.
Em seu livro publicado no final de 2021, Lins Ricon convida para um olhar mais abrangente sobre o casamento e que passa, em grande maioria, pelos temas da parentalidade. Há capítulos, por exemplo, que falam sobre o puerpério, sobre a carga mental, a divisão de tarefas em casa e a criação dos filhos propriamente dita. Tudo isso com boas doses de ironia. "Talvez o humor não seja o único caminho. Mas é o único no qual eu acredito. Se a ideia é comunicar, é preciso quebrar eventuais resistências. E o humor deixa todo mundo mais relaxado, aberto para ouvir. Outra razão pela qual escolhi o humor é bem óbvia. Sou um homem, e escrevi o livro numa linguagem que eu mesmo gostaria de ler. Acho que há livros que falam sobre os homens, escritos por homens, mas que na verdade dirigem-se às mulheres. Elas vão ler, aprovar, concluir que seus maridos ou companheiros são insuficientes, eles jamais vão sequer abrir o livro, e nada muda. Ao contrário, o ressentimento só aumenta", diz o autor.
É fato que cada vez mais os homens estão buscando reocupar os espaços, seja buscando por autoconhecimento ou se alinhando à políticas públicas, leis, campanhas e projetos que tem gerado um denso corpo de conhecimento que dá retaguarda e legitima a discussão sobre paternidade e cuidado.
Pedro Fonseca é escritor e educador parental em formação à frente dos cursos da Rede Amparo junto com sua parceira Lua Barros. Um dos cursos da rede é o Princípios da Parentalidade Positiva, que como conta Pedro, começou na sala da casa da família para grupos de até 15 pessoas, e depois evoluiu para um curso online, tornando-se acessível a muito mais gente. Ele conta que em 7 turmas online, já passaram mais de 2.500 participantes. "Falando assim, parece muita gente, né? Mas não é. São pessoas que têm inúmeros privilégios, inclusive o de ter tempo e dinheiro disponíveis para fazer o curso. Então de alguma forma sinto que ainda estamos no processo de chegar aos lugares e às pessoas com quem mais precisamos dialogar sobre a construção de relações saudáveis nas famílias".
Apesar da bolha, essa jornada de autoconhecimento é um caminho sem volta. Na conversa com Lins Ricon, perguntei ao escritor se um homem mais atento à sua parceira vai desenvolver, consequentemente, uma paternidade mais ativa.
"Como disse o Krishnamurti, um escritor do qual somos fãs aqui em casa, tudo é relacionamento. Logo o que você chama de jornada do autoconhecimento começa quando ficamos atentos às nossas próprias formas de agir em qualquer relação, e não apenas no casamento. Quando você fala de um marido mais consciente, acredito que estamos falando de um marido atento às necessidades do outro.
É muito difícil entender a real necessidade do outro sem passar pela mesma experiência. No caso do puerpério isso é impossível. Um homem jamais vai passar pelo puerpério, tema aliás que explico no livro. Mas quanto mais atento ele estiver ao que sua esposa tentar explicar sobre o tema, melhor. Eu disse tentar, porque o puerpério é uma mistura de descarga de hormônios com perda de identidade que é difícil definir. O fato é que ela está sentindo algo único. Dentro da nossa ignorância elementar, o que podemos fazer é respeitar esse momento e fazer de tudo para que ela fique o mais confortável possível. Carinho, atenção e leveza. Nada de argumentações inúteis".
Pedro também parte da premissa de que cada curso, formação, encontro, episódio de podcast coloca um degrau à frente. "Subir ou não é a escolha de cada um. Vejo homens que ao se depararem com esses degraus, param. Reveem a própria história. Outros encaram de frente imediatamente. Mas todos, sim, seguem adiante. Seja com um tempo próprio de elaboração, seja numa vontade genuína que nem os permite pausar – como se estivessem esperando por aquele degrau. O que não vejo é esses homens darem passos para trás. Isso nunca vi. E isso me estimula muito a seguir com as provocações que a Rede Amparo faz. Por ver determinadas transformações acontecerem bem diante dos nossos olhos".
A questão de gênero e a carga mental
A questão do gênero estrutura as relações familiares em sociedades patriarcais como a nossa. E a carga mental que recai sobre as mulheres reflete exatamente essa dinâmica. Ela é um dos temas no livro Que homem, e, como alerta o autor, a carga mental pode ser sim vivenciada ativamente. "São milhares de micro decisões que fazem uma casa funcionar. Nada acontece magicamente. Há sempre alguém que pensou no assunto, como por exemplo “o que vamos comer hoje?”. E quando chegam os filhos, a complexidade dessa dinâmica aumenta drasticamente. Por exemplo, saber onde levar as crianças no final de semana sem perguntar sugestões para sua esposa. Enfim, uma participação mais ativa começa quando deixamos de agir como filhos e passamos a agir como adultos. Parece óbvio, mas não é," define Lins.
Quando olhamos o recorte de um casal homoafetivo, a discrepância da questão de gênero praticamente se anula e nos mostra como ela está alicerceada no patriarcado. O psicólogo Alexandre Fleury, casado há 24 anos, é pai de dois meninos de 14 e 16 anos, e conta que na sua casa não há uma divisão de tarefas por conta de gênero, muito menos há um papel de mãe ou de pai. "Nós dois trabalhamos, os meninos frequentam a escola e atividades esportivas. Todos ajudam na organização e limpeza da casa e as refeições e outras tarefas, depende de quem tem mais tempo ou disponibilidade. Não há uma clara divisão de tarefas uma vez que todos são responsáveis pelo cuidado da casa e da familia e há ajuda mútua. Ensinamos que a responsabilidade em casa é independente de gênero".
Pedro também lembra como a questão de gênero reflete numa velha conhecida cilada. "Apesar de ver que a cada nova turma mais homens-pais se interessam e vêm junto, ainda é muito pouca gente num recorte do tamanho do país e do tamanho do problema social que é termos famílias que ainda se espelham em formatos antigos, que não cabem mais. Onde quem cuida, quase que exclusivamente, são as mães. E os pais seguem nessa narrativa de provedores, ausentes, autoritários. Precisamos rever como os afetos nos ajudam a, coletivamente, repensar essas relações e reorganizar os papéis que ocupamos. Aos homens-pais, o meu convite é sempre a pensar em como podemos fazer diferente dos nossos pais. Isso já é um belo passo".
Disparidade entre licença-maternidade e paternidade
Nessa mesma esteira está o entrave da disparidade entre licença-maternidade e paternidade no Brasil. A situação que as famílias se deparam quando nasce um bebê é: a mulher tem direito a pelo menos 120 dias de licença-maternidade no setor privado - e pode chegar a 180 dias se for funcionária de uma empresa cadastrada no programa Empresa Cidadã ou do setor público. Para os homens, a maioria das empresas dá direito a cinco dias corridos de licença-paternidade, o que dificulta em muito a divisão dos cuidados iniciais do bebê. Em alguns cenários específicos, os pais podem conseguir até 20 dias.
Desde 2021 está tramitando na Câmara um Projeto de Lei (1974/21) que trata do instituto da parentalidade no Brasil e de todos os direitos dele decorrentes, como a licença parental. O objetivo é garantir que todas as pessoas que possuam vínculo socioafetivo tenham plenas condições de exercer seu papel legal de cuidador. Em resumo, uma das propostas do projeto é que a licença parental possa ser compartilhada entre mãe e pai, como já acontece em países desenvolvidos.
Alexandre conta que no caso da família dele, o marido conseguiu a licença paternidade nos mesmos moldes da maternidade e ele teve a licença padrão de 20 dias. "Importante ter claro que no caso de adoção homoparental de um casal de dois pais, a legislação brasileira concede a licença maternidade para uma das pessoas do casal. Desta forma, já há uma questão positiva e de evolução. Em relação à licença paternidade estendida ou compartilhada, já há muitas empresas que concedem o mesmo tempo da maternidade ou mais tempo do que a legislação prevê".
O psicólogo atua como diretor de RH e explica que a decisão de uma empresa em conceder este benefício depende da cultura organizacional e na maioria das vezes de orçamento, uma vez que estender a licença paternidade, atualmente, o custo é da empresa. "Se as empresas encararem como investimento e não custo, produzirá um ambiente laboral mais favorável, boa reputação como marca empregadora, melhora o engajamento de profissionais e atua na inclusão. Só há benefícios para todos".
A caminhada é conjunta
A pediatra Marcia Gomes da Silva atua há 25 anos no atendimento clínico de famílias e enxerga melhoras no cenário:
"Atualmente, salva algumas exceções como compromisso trabalho e viagens, os homens querem e fazem questão de estarem presentes nas consultas. São ativos, perguntam, contam experiências e, muitas vezes, trazem suas trajetórias pessoais de medo e inseguranças em relação a essa função. Sinto homens em geral muito mais abertos à vulnerabilidade das incertezas nos últimos 10 anos - o que a meu ver é um grande avanço".
A pediatra também falou sobre uma mudança na legislação que contribuiu muito para essa dinânica. "A Lei nº 11.108 permitiu acompanhante no trabalho de parto foi sancionada em 2005. E considero esse um marco legal do ingresso dos homens na parentalidade. Essa lei impulsionou a sociedade e as famílias a incluírem desde o início da vida a presença dos homens, que ocuparam esse lugar e começaram a querer entender mais desse processo, pois vivenciam essa experiência na pele".
Lins Ricon participou dos partos naturais dos dois filhos - Luna e Apollo. Mas o interesse pelo tema e a compreensão da sua dimensão, vieram depois de muita insistência de sua companheira, Eliana Rigol. "Por mais que eu soubesse que ela desejava um determinado tipo de parto, eu achava que o tema não necessitava de minha atenção. Um erro brutal, mas foi assim. À medida que a gravidez avançava, ela sugeria textos que eu poderia ler. Segui procrastinando, até que ela perdeu a paciência e me mostrou um vídeo de um bebê nascendo gentilmente. Aquilo foi surpreendente. Então era possível um bebê nascer daquela forma? Sem gritos? Sem macas de hospital? Sem desespero? A Eliana domina o assunto, tanto na teoria como na prática, e por isso ela criou um curso, que se chama Um Parto pra Chamar de Meu. Eu falo ali sobre o papel do homem. Não é ajudar. É não atrapalhar. O que não significa passividade. Ao contrário".
"Acho que participar do parto, e de todo o processo que leva até ele, gera um benefício emocional insuperável na relação entre pai e filhos. Ao invés de ficar esperando o bebê como o resultado de uma espera de nove meses, você participa do processo, e o vínculo fica ainda mais mágico. O parto é um tema feminino por excelência. Como a Eliana diz, parir é um verbo, e o sujeito, uma mulher. O despertar aqui é das mulheres. Quanto mais mulheres despertarem para esse poder, trarão junto seus companheiros".
Presença
Num texto publicado nas redes sociais da Rede Amparo e assinado por Pedro Fonseca, o escritor diz que há uns anos falávamos em paternidade ativa, como se houvesse possibilidade de ocupar o papel de pai sendo passivo. Não há. Então o pai bom ou o pai legal soa como esse salvo conduto dado aos homens, que gozam da chance de nem serem pais. "Particularmente não gosto de adjetivar os pais. Pai atuante, pai presente, pai ativo. Sinto que jamais usamos esses adjetivos quando são mulheres. Imagina uma roda de conversas se alguém vai perguntar: "Mas ela é uma mãe presente? A maternidade dela é ativa?", questiona o educador.
Tá, mas como jogo é jogo e treino e treino, perguntei aos escritores como fazer para estreitar a distância entre teoria e prática?
Pedro diz que todo dia acorda e pensa 'o que tenho mais importante a fazer hoje?'. E essa resposta é sempre a mesma. "O que tenho de mais importante a fazer hoje é ser pai de João, Irene, Teresa e Joaquim. A melhor coisa que posso fazer por mim, por eles e elas e pelo mundo é isso. Ser um pai que presta atenção no que precisa ser feito com, por e para aquelas crianças".
Lins endossa a presença e diz que não acredita nessa dicotomia entre teoria e realidade, como se existissem teorias prontas para serem aplicadas no momento em que se tem um filho nas mãos.
"A palavra mais importante aqui é presença. Eu chamaria então de paternidade presente. É o que os filhos mais precisam. Presença, olhar e afeto. Mesmo porque eles não são um problema logístico a ser resolvido. Teorias de parentalidade remetem, pelo menos para mim, a essa lógica de solucionar problemas. Não é o caso. Os filhos são o mistério da existência na sua presença, prefiro partir desse ponto de vista.
Lins tem dois filhos, Luna, com quase 10 anos, e Apollo, com quase 5. Os dois nasceram no Canadá, um país onde o trabalho está a serviço da família, e não o contrário, segundo ele. "Lá os horários são respeitados, mesmo em propaganda, minha área de atuação. O que me permitiu estar mais presente quando a Luna nasceu. Mas quando digo mais presente eu falo das horas ao final do dia e nos finais de semana".
Ele compartilha os detalhes da sua experiência que ajudam a entender a complexidade para se reestruturar uma família com o nascimento dos filhos: "A Eliana matou no peito sozinha, sem rede de apoio, esse puerpério e os cuidados infinitos que um bebê precisa. Conversávamos muito, e mesmo assim demorei a entender a dimensão daquela solidão e cansaço. Justamente, como disse antes, por não vivenciar a situação. Eu saia e voltava. Enquanto isso o turbilhão acontecia".
Com o nascimento do segundo filho, a família decidiu sair do Canadá e se mudar para Lisboa, uma decisão de vida. "Queríamos estar os dois mais presentes, principalmente nos primeiros anos dele. Passei a trabalhar como freelance, a Eliana acelerou muitos dos seus projetos, como a Jornada da Heroína e o curso de parto natural, e eu me tornei, de fato, um pai presente. Ao me tornar praticamente o principal cuidador do Apollo, a ficha caiu".
"Nada demanda mais, ou é mais exaustivo, do que cuidar de um bebê ou criança pequena. Mas não digo isso em forma de lamúria. Repito, não são um problema logístico. São o milagre que demanda toda sua energia e atenção. O trabalho “na firma” nem chega perto. Isso porque não era eu que estava amamentando. E no nosso caso não houve qualquer tipo de terceirização, como babás ou empregadas em casa. Éramos apenas nós dois. Foi uma lição antropológica pra mim. Participar de tudo, e vivenciar a dimensão infinita dessa demanda, me fez entender o grau de ressentimento que muitas mulheres sentem por seus companheiros."
Pedro fala sobre os caminhos que um homem que está chegando agora nessa jornada da parentalidade pode seguir. "O caminho de lidar com a morte do homem que ele foi até ali. Se o homem estiver atento ao que a paternidade o convida – e o impacto que isso tem na sua existência mais íntima, mas também o que isso pode provocar socialmente – ele nunca mais volta ao mesmo lugar de antes".
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