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Bob Lester é

- Senhoras e senhores! Ladies and gentlemen!

Ninguém entendeu direito quando o velhinho de boina na cabeça interrompeu o moonwalk no meio, se apoiou na mesa de plástico ao lado, agachou e começou a trocar de sapatos.

- Peço a atenção de vocês para essa apresentação de agora que será especial. São os sapatos que ganhei do Fred Astaire.

O rapaz da mesa ao lado que já tinha largado o polpetone no prato enquanto até a fila de espera do bar silenciava, não conseguia tirar os olhos do que via: com sapatos de sapateado, cantando “My way” à capela e convidando o público a acompanhá-lo, um showman de cabelos brancos que podia ser seu o avô de qualquer um ali conseguiu dar descanso aos garçons que não tinham parado um minuto anotando pedidos de macarronada com frango ou panquecas em pleno horário sacro do domingo.

Nem o Adoniran colado na parede conseguia desviar os olhos do velhinho que fazia bailar suas calças escuras pareadas com a camisa debaixo de um colete preto, enquanto a boina na cabeça permanecia irreparável cobrindo os cabelos brancos. Os olhos brilhavam e ele dominava o público de cabo a rabo: soltava a voz em letras conhecidas em inglês, conversava com o público em espanhol, convidava a todos a cantar e aplaudir o espetáculo.

Depois de alguns blues, Billie Jean coreografada passo a passo e um número de sapateado ao som de Sinatra, ainda vinha o grand finale com um espacate de dar inveja a Shirley Temple. Mais do que depressa, o boca-a-boca que corria o bar e dava 70 anos pro velhinho já tinha despencado no banco de apostas para no máximo 60. Mas só quem ficou até o final teve a constatação: 101 anos sapateando e cantando na cara suja de molho de quem via embasbacado a arte de Bob Lester.

Depois de suas apresentações, o velhinho de pouco mais de um metro e sessenta costuma passar, junto com o chapéu para os trocados, uma pasta preta com os recortes de jornal e fotos de sua carreira. Há sempre entre os presentes aqueles que já o conhecem dos programas de tevê e chegam pedindo fotos.

- Sou o artista brasileiro que mais frequentou programas de televisão até hoje. Na Xuxa fui duas vezes, já fui na Hebe Camargo, três vezes no Chacrinha, duas vezes no Flávio Cavalcanti, duas vezes no Jô Soares, duas vezes na Ana Maria Braga, três vezes no Silvio Santos, duas vezes no Gugu e duas vezes – escuta bem hein! – duas vezes na Galisteu e na Sônia Abraão. Não tem mais onde eu ir nesse Brasil em televisão.

É assim que Bob Lester tenta virar o jogo contra o ostracismo. Fala, acredita nas próprias palavras e convence seu ouvinte com a mesma segurança de quem já foi habitué dos palcos mais consagrados do show business. “O governador do Rio de Janeiro já me considerou patrimônio histórico do Rio”, - e aponta pra foto na pasta ao lado de Sérgio Cabral e sua esposa.

A pasta não é o único orgulho. Para os incrédulos, exibe ainda a carteirinha de músico e fala do registro de nascimento, que aponta dois anos a menos, ao que ele logo explica: ‘a data correta é realmente 17 de janeiro de 1912, teve um atraso na hora de providenciar a papelada quando nasci’. A verdade é que dois anos a mais ou menos não fazem a menor diferença para esse senhor de voz grave e palavras firmes, olhos negros miúdos perdidos num rosto queimado de sol que aparenta no máximo 80. Nem os ralos cabelos brancos que caem pelas laterais da cabeça e as rugas esparsas provam o contrário.

Mas o Bixiga não é a sua casa. Natural de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, o músico e dançarino que chegou ao Rio em meados da década de 30 para participar do programa de calouros de Ary Barroso, já teve muitos endereços. Ele conta que na década de 80, morou de graça por quase 10 anos no Copacabana Palace porque conhecia Jorginho Guinle, um dos herdeiros do hotel. “Éramos amigos de farra”, lembra. Depois, também foi hóspede de um hotel na Glória. “O Roberto Carlos que me ajudava nessa época”.

A realidade tem sido essa nesses dias de ostracismo para o sapateador: de hotel em hotel, mas agora com muito menos pompa do que nos anos de ouro do rádio. Vive da ajuda dos amigos mais próximos e dos trocados que recebe nos apresentações que faz em bares e na rua.

Niterói é o atual paradeiro de Bob e, talvez, não o último. A quitinete onde vive fica no décimo segundo andar de um prédio grande de fachada antiga, dividido em pequenos apartamentos, numa rua de comércio popular da cidade, perto da conhecida Rua das Barcas, onde diariamente os trabalhadores embarcam rumo ao Rio de Janeiro.

- Esse apartamento é do Agnaldo Timóteo, um grande amigo meu. Ele tá me ajudando nesses tempos de dificuldade. Eu morava em Realengo, com minhas sobrinhas, mas teve uma briga e me colocaram pra fora. Essa juventude não tem cabeça, - foi me contando enquanto lidava para destrancar o cadeado do portão no corredor do prédio.

As paredes brancas recém pintadas que delimitam os 20 metros quadrados da quitinete abrigam um colchão do lado esquerdo, no chão, um armário de duas portas encostado na parede direita e uma mesinha com a televisão e o rádio. Perto da porta de entrada, uma pia com alguns poucos talheres, e uma porta sanfonada que divide o espaço do banheiro.

-“O Agnaldo já mandou comprar uma cama pra mim. Tá pra chegar nesses dias”. Contou, trancando lá dentro o constrangimento e me convidando a partir para o Arpoador, como sempre faz aos sábados.

Enquanto atravessávamos os quilômetros de asfalto sobre a Baía da Guanabara, Bob foi me contando que um dos segredos dos seus mais de cem anos é a alimentação. Não bebe e não fuma. Só come comida saudável, salada, arroz e feijão. Nem carne vermelha, frango e peixe entram no cardápio, disse.

As apresentações que faz só acontecem aos fins de semana. De segunda a sexta, leva uma vida pacata. Acorda, toma seu café, sai pra rua de manhã pra ver gente, almoça e volta pra casa tirar uma pestana. À tardezinha, dá outro passeio pelas ruas de Niterói.

- Quem faz sua comida?

- Pra não mentir pra você, sabe onde eu como? Lá no restaurante que o pessoal come por um real. Sem brincadeira, de segunda a sexta eu como com um real. É porque não tenho condições, né? Vai tomar um café de manhã com um pão e dá 6, 7 conto né? Um pastel por aí tá 4 conto. Não dá.

No jantar, o ritual se repete há algum tempo na pia da quitinete: um pão francês com tomate e cebola crus.

No Arpoador, todos o conhecem. Caminha a passos firmes em direção a uma das mesinhas de um restaurante na orla, perto das pedras, enquanto cumprimenta os garçons, conta que conhece o dono e brinca com outros artistas de rua por ali.

Apesar de estar sem a roupa de trabalho, veste-se alinhadamente com uma camisa xadrez em azul, calças sociais num tom mais escuro que a camisa, sapatos fechados e uma boné com a inicial “B” bordada em branco. Sem a roupa do show, os movimentos parecem ficar mais tímidos, embora não interfiram na sede de relembrar as histórias. Vai logo tirando da bolsa de pano o par de sapatos tão queridos – ganhados do Fred Astaire – enfatiza – os mesmos que vi quando o conheci no Bixiga.

Mas os olhos se regalam mesmo é com a pasta de recortes, seu baú de memórias trazido debaixo do braço. A primeira página mal encosta no dorso da anterior e as lembranças assolam a mente, o abre e fecha das mandíbulas parece não dar conta de por pra fora tanta palavra, tanta história.

A pasta é sua autoafirmação. Não que ele precisasse de alguma muleta, pelo contrário. A memória é quase tão boa quanto a disposição. Lembra de datas, dos nomes das pessoas que aparecem nas fotos, dos lugares onde se apresentou pelo Brasil e pelo mundo.

Mas há uma estrela maior na carreira do velhinho sapateador. O arranjo de frutas tropicais na cabeça e o sorriso largo que pintou o mundo de carmim estão na fotografia que é a porta de entrada para esse mundo de lembranças de um homem de 101 anos que hoje, como anônimo, conquista espectadores nas ruas que nem imaginam as histórias que ele traz guardadas no peito.

Elas são muitas e começam a tomar forma a cada virada de página. Bob aponta o dedo para uma foto em preto e branco em que surge, na capa da Revista Cruzeiro de 17 de setembro de 1955, o Bando da Lua, grupo musical que acompanhou Carmen Miranda em suas apresentações, formado por sete rapazes. De roupas brancas bem alinhadas, os sete se enfileiravam formando uma escadinha, de lado, com todos olhando para a direita. “O primeiro aí é o Vadeco e eu sou esse segundo”, garante com o dedo ainda em riste.

Raramente olha nos olhos durante o relato, mas a memória é sua amiga. Contou que chegou ao Rio em 1932, ainda com o nome de batismo - Edgar de Almeida Negrão de Lima, para participar do programa de calouros de Ary Barroso. Depois de receber nota dez, passou a trabalhar no Cassino da Urca ao lado de Oscarito e Grande Otelo como sapateador. Numa das fotos da pasta, desbotada num tom de sépia, está lá o autógrafo e a dedicatória em letra de mão assinado por Ary Barroso: “Calouros em desfile / primeiro lugar nota 10! / prêmio 20.000 reis / Edgar de Almeida / 1936”.

Foi no Cassino da Urca que conheceu a estrela que mudaria sua vida: Carmen Miranda. Segundo o que ele conta, a pequena notável, que já construía os primeiros passos de sua carreira internacional na América do Norte e Europa, convidou-o então a integrar sua banda e Bob fez sua primeira viagem internacional em 1937.

Conheceu muitos países. “Foram 22 anos no Bando da Lua”, relembra. “Eu tocava violão sete cordas”, diz em tom nostálgico, cruzando sobre a mesa as mãos pequenas e sem calos que não endossam a atividade.

Foi numa dessas viagens aos Estados Unidos que ganhou o nome artístico. Bob Hope, o famoso ator e comediante dos anos 30, lhe aconselhou que Edgar de Almeida não causaria um bom impacto. Estava assim batizado: Bob Lester.

As páginas seguintes do seu baú de memórias trazem muitos outros artistas, personalidades e lugares consagrados: Cassino em Las Vegas, Rádio Cultura e lá está ele junto do Bando da Lua e ao lado de Carmen. A feição jovem de todos impede que se reconheça alguém logo de cara, mas as fotos escaneadas em preto e branco e já maltratadas pelo tempo trazem todas uma marca em caneta azul de onde se lê, em letra de forma: Bob Lester. É como se aquelas letras tortas reafirmassem sua existência a cada vez que ele aponta para elas.

Também há imagens de filmes americanos e ele logo se identifica entre os rapazes bem vestidos e alinhados. “Sapateei com Sinatra, Fred Astaire e a Doris Day”, lembra dos nomes com intimidade. Samy Davis Junior, Elvis Presley e Ray Charles também figuram entre as fotos e lembranças.

Ele conta que em 1955, pouco antes do falecimento de Carmen, voltou ao Brasil. Morando de novo no sul, passou a fazer shows na América Latina, especialmente Argentina e Uruguai.

Assim como a volta brusca para sua terra, a verborragia da lembranças vai dando lugar a uma fala mais pausada e tímida. Com os olhos marejados, ele conta meio por alto sobre o acidente que tirou a vida da sua família e recorre a quem até então não tinha falhado: põe a culpa na memória e puxa o próximo assunto.

As informações sobre esse período da vida de Bob são desencontradas, sina que parece o perseguir desde o erro de registro na sua certidão de nascimento. No Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, consta que em 1973 Bob sofreu um forte trauma com a trágica morte de sua mãe, sua esposa e de suas duas filhas em um desastre automobilístico. Depois disso, passou algum tempo em tratamento psicológico e tentou novamente um espaço na televisão, mas sem sucesso.

Bob não tem parentes vivos além das sobrinhas, com quem cortou relações, segundo o que conta. Luiz Henrique, jovem cantor carioca, é um de seus únicos amigos mais chegados. É ele quem ajuda Bob a agendar alguns shows e zela pelo seu bem-estar.

Foi com a ajuda de Luiz que consegui me encontrar com Bob. Soube, depois do nosso encontro, que é Luiz o verdadeiro dono da quitinete onde Bob mora atualmente. Eles se conheceram quando Bob ainda morava na Glória, na mesma rua que Luiz. O cantor sabia que ele era um artista de rua respeitado, mas não conhecia a fundo seu passado. Aos poucos, foi ouvindo as histórias do vizinho famoso. Em 2005, encontrou Bob no velório da cantora Emilinha Borba e firmaram amizade.

Apesar da proximidade, Luiz não consegue endossar a veracidade das memórias de Bob porque não tem nenhum contato da família e nem do passado do sapateador. Ele conta que há várias passagens obscuras na vida de Bob, entre elas a que envolve o acidente de carro de sua família.

Mais pragmático, o escritor Ruy Castro, que escreveu Carmen: uma biografia, é taxativo: “Bob Lester fez tão parte do Bando da Lua quanto eu da equipe de astronautas que foi à Lua”. Nas 600 páginas da biografia, Ruy fala sobre Carmen Miranda e as pessoas que a cercaram, mas o nome de Bob Lester não aparece uma vez sequer. “Falei com cerca de 200 pessoas que conviveram com Carmen. Nenhuma conheceu o Bob”, contou o escritor quando o contatei.

Em biografias anteriores, como o livro Carmen Miranda, a Cantora do Brasil, de Abel Cardoso Júnior, o autor relata que o Bando da Lua passou por uma fase constante de troca de integrantes a partir de 1944 e que, muitas vezes, na falta de algum músico, alguns suplentes eram chamados.

Em 2010, a história do sapateador foi parar no cinema. O curta “Bob Lester”, dirigido por Hanna Godoy e Mariana Silveira estreou no Cine Odeon com a presença do personagem ilustre. Hanna conta que a ideia inicial da dupla era fazer um documentário protagonizado pelo próprio Bob, mas depois de alguns desencontros, mudaram de ideia e convidaram o ator Stênio Garcia para o papel principal.

A cineasta também falou sobre a dificuldade que teve com a liberação das imagens de arquivo de Carmen Miranda que aparecem no curta, já que a pessoa responsável pelos direitos de imagem não corrobora com as lembranças de Bob. Mas o filme é, acima de tudo, sobre a história que Bob assumiu pra ele, resumiu Hanna.

A noite já havia caído há algumas horas no inverno abafado do Rio de Janeiro quando nos despedimos. De volta à Niterói, acompanhei-o até a porta da quitinete, no décimo segundo andar. Mesmo cansado, o andar permanecia firme. Sonolento depois do dia agitado, ainda guardava disposição para programar a agenda do dia seguinte. Iria acordar cedo, tomar seu café e pegar a barca rumo ao Rio de novo. “Essa cidade vai estar cheia, vou lá ficar no meio do povo, ver o agito”. À medida que o elevador vencia os andares, ele cantarolava canções antigas e soltava frases em espanhol. “Buenas noches, buenas noches! Que noche buena! Me voy a dormir”.

Deixei-o com um aperto no peito e uma certeza. À medida que a realidade se esfumaça, ele recorre a uma memória própria, e é como se a delicadeza e a polidez de suas maneiras suprisse a falta de razão.

Não restam testemunhas de uma parte de sua vida e talvez seja essa a razão dele seguir vivendo. Ninguém irá corrigir se eu decidir fantasiar, deve ter pensado. Bob Lester pode ser uma memória inventada de Edgar de Almeida, pode ser uma identidade momentânea. Mas, naquele encontro, por um instante, Bob Lester foi o que ele quis ser.