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[Festival Nacional do conto] A hora e a vez do conto

Em Conto (não conto), o escritor Sérgio Sant’Anna brinca com seu leitor: “Mas

digam-me: se não há ninguém, como pode alguém contar essa história? Mas isto

não é uma história, amigos. Não existe história onde nada acontece. E uma coisa

que não é uma história talvez não precise de alguém para contá-la. Talvez ela se

conte sozinha. Mas contar o que, se não há o que contar? Então está certo: se não

há o que contar, não se conta. Ou então se conta o que não há para se contar”.

Não precisa de muita coisa além desse parágrafo autoexplicativo para mostrar

que hoje o conto é um gênero tão flexível quanto a própria literatura. Entretanto,

nem sempre foi assim. Antes, ele tinha um formato mais fechado com começo,

meio e fim e trazia um acontecimento, uma história.

Em Teoria do conto, Nádia Battella Gotlib, conta que foi de Anton Tchekhov a

missão de libertar o conto de um dos seus fundamentos mais sólidos: o do

acontecimento, afastando-se assim dos contos de Guy de Maupassant, que

traziam o acontecimento que flui, naturalmente.

A evolução é natural, explica André Sant’Anna, filho de Sérgio e também contista.

“Antigamente era um modelo fechado, de uma história literária. Quando não se

contava uma história, acabava se transformando em crônica. Mas hoje em dia a

crônica e o conto se misturaram tanto - a própria poesia e o ensaio também

entram nessa - que fechar a literatura só em conto, romance, novela e poesia é

muito pouco. Acho que o conto virou o gênero onde se tem mais espaço para

experimentação.”

André é um bom exemplo da diferença geracional entre contistas. “Meu pai é

mais um artesão da literatura em relação à maneira dele escrever e reescrever. E

eu já improviso mais, não tenho essa coisa do artesanato literário. Misturo muito

a literatura com outras coisas, uso muito primeira pessoa, experimentação de

linguagem”.

Noemi Jaffe, escritora e crítica literária, lembra que toda narrativa passou por

uma ruptura, uma evolução no sentido de uma linearidade. O conto antes se

encaminhava para um desfecho apoteótico e agora não é mais assim, explica.

“Um conto pode não falar de assunto nenhum, não ter clímax, pode não ter

começo meio e fim, pode não ter causa e efeito, pode não ter nenhuma ação.

Quantos contos da Clarice Lispector não acontecem nada? A Lydia Davis

[escritora estadunidense], por exemplo, tem contos de quatro linhas, que são

totalmente desestruturadores, você lê e pensa: o que eu faço agora?”.

A relação dos escritores mais jovens com o conto também tem mudado. Luisa

Geisler observa que como ela, muitos escritores vieram de oficinas de criação

literárias, principalmente a partir dos anos 80, o que fez com que tivessem um

olhar mais teórico sobre o conto. “Nesse sentido acho que tem uma compreensão

teórica maior, a teoria do conto não é mais uma coisa tão elitista. Essa é uma

diferença da minha geração. E acho também que são escritores mais versáteis,

eles não tem problemas em escrever um conto, um romance, são mais flexíveis

em termos de gênero”, completa.

Em consonância a esse novo cenário, eventos como o Festival Nacional do Conto,

o único dedicado ao conto da América Latina (que foi realizado em maio em

Florianópolis), são importantes para abrir o debate, reunindo escritores e

expondo os diferentes fazeres do conto.

Carlos Henrique Schroeder, escritor, curador do festival e editor da Design

Editora, observa que embora tenha ocorrido um aleijamento do conto nos

últimos tempos no mercado editorial, a cena digital é o grande momento do

conto. “Tem vários autores buscando publicar em formato digital. Atualmente

nós temos a Formas Breves, selo digital dedicado ao conto; a Flaubert, que é uma

revista digital de contos, então hoje em dia o gueto é o conto. Eu espero que o

digital funcione como uma revitalização do gênero do conto, com as pessoas

lendo em celulares, tablets, nos seus computadores. Acho que o mercado digital

vai ajudar muito a proliferação, a difusão e o fomento do conto”.


Nocautes, fotografias e narrativas

No caminho dessa tradição, não faltaram autores que tentaram definir e teorizar

sobre o fazer do conto. O argentino Julio Cortázar dizia que “o romance está para

o conto assim como o cinema está para a fotografia”, já que o conto, como a

fotografia, recorta um fragmento da realidade, devendo, portanto, ser

significativo. E numa analogia ainda mais contundente, compara-o ao boxe: “O

romance vence por pontos, o conto por nocaute”.

Cortázar estudou e traduziu para o espanhol todos os contos de Edgar Alan Poe e

sintetizou também o conceito de conto do estadunidense: “Um conto é uma

verdadeira máquina literária de criar interesse”.

Já seu compatriota Ernest Hemingway não concordava muito com as definições

de Poe quanto à extensão, ao acontecimento extraordinário e muito menos com o

final surpreendente. Ele criou a teoria do iceberg: num conto, o mais importante

da história não deve ser contado, deve ficar oculto bem abaixo da superfície da

água. A narrativa deve ser construída com o não-dito, o subentendido.

É por essa linha também que seguia Ricardo Piglia. Para ele, um conto, seja ele

clássico ou moderno, sempre conta duas histórias: uma visível e outra secreta.

Mas cada uma das duas histórias pode ser revelada de modos diferentes. O

talento individual está na maneira como cada contista trabalha a tensão entre as

duas histórias, fornecendo ou suprimindo informação.

Entre os brasileiros, Dalton Trevisan tem uma boa definição: “um bom conto é

pico certeiro na veia. E Mário de Andrade, em “Contos e contistas”, sacramenta:

“em verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de

conto”. Ao que Sergio Sant'Anna assina embaixo. “O conceito de conto é bem

elástico hoje em dia. Prefiro a palavra narrativa, que cabe tudo. Mas de qualquer

maneira, não vamos fazer isso um drama, vamos fazer nosso papel de contista”


Facilidade e facilitador

O que é de comum acordo entre os escritores é a dificuldade de se escrever

contos. Machado de Assis, grande contista, já alertava: “É gênero difícil, a

despeito da sua aparente facilidade”.

Para Noemi, é sempre um desafio muito grande escrever um conto, embora seja

um facilitador para leitores iniciantes. “Eu sempre aconselhava meus alunos do

ensino médio, a começar a ler por crônicas, e, depois, por contos, por causa da

extensão. Atualmente as pessoas tem muito pouco fôlego de leitura porque

fazem tantas coisas e a internet é muito veloz... então o conto chega como um

facilitador ”.

Luisa pondera que depende muito do leitor e da experiência dele. “Para minha

geração, por exemplo, Crepúsculo é mais fácil de ler do que um conto do

Machado de Assis. Nem sempre é a entrada mais tranquila. Acho que depende

tanto do leitor quanto do autor. É uma forma curta, mas não menos trabalhosa de

leitura”.

O que ler e por onde começar?

Para os leitores iniciantes, o SaraivaConteúdo pediu aos escritores que dessem

dicas de seus contistas preferidos. Para os já familiarizados com o mundo do

conto, aqui vão dicas para novas leituras:

- Sérgio Santanna:

Temos contistas brasileiros muito bons como Rubem Fonseca. Para quem quer

iniciar no mundo do conto, ele é muito atraente, pega o leitor pelo pé. É muito

difícil uma pessoa ler um conto dele e ficar indiferente, mesmo que essa pessoa

não seja um leitor assíduo.

Dalton Trevisan também é muito bom e, entre os estrangeiros, Franz Kafka,

naturalmente. Para um leitor jovem, recomendo Fernando Sabino, é bom para

engrenar no desejo de ler.

- André Santanna:

Rubem Fonseca é um ótimo início, ele é um mestre do conto brasileiro e continua

produzindo até hoje – aliás, o último livro de contos dele, Amálgama, é excelente.

Também gosto muito do Kurt Vonnegut Jr., Jorge Luis Borges, Sérgio Sant’Anna e

Rafael Sperling, um escritor da nova geração.

- Noemi Jaffe

Me influenciei muito pela Clarice Lispector. Acho que depois que ela escreveu

todo mundo foi um pouco influenciado por ela, inclusive as mulheres. E também

tenho como preferidos Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Ítalo Calvino e

Guimarães Rosa.

- Luisa Geisler:

Eu li muito Lygia Fagundes Telles, foi muito importante na minha formação.

Comecei por acidente, li Antes do baile verde, era uma leitura obrigatória na

escola e me apaixonei muito.

Quando comecei a escrever, eu emulava autores como Hemigway, Tchecov,

James Joyce. Para os jovens leitores, acho que o Marcelino Freire bem acessível, é

um cara que fala bem em público e os contos dele são claros. Tem também a

Carol Bensimon, que escreve contos com mais profundidade mas não são difíceis

de ler. Também gosto de André de Leones, Rafael Gallo, Alice Munro.

- Carlos Henrique Schroeder

Eu gosto de muitos contistas, desde Borges, Cortázar, Raymond Carver, Bolaño,

Kafka, Samuel Rawet, até essa nova geração, os escritores que participam do

Festival, leio todos. Como diz o Gonçalo Tavares, “eu prefiro ser influenciado por

mil do que por cem”.