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[Bienal do Livro SP] Jorge Amado muito além do cravo e da canela

“Papai era uma pessoa muito generosa e isso se refletia na vontade dele em alimentar as pessoas. Ele dizia que tinha que ser ‘comida de muito’. Era sempre uma mesa farta” – essa foi uma das muitas histórias da família Amado que Paloma, a filha do escritor, contou durante a sessão “Na cozinha com Jorge Amado”, que aconteceu na 22ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo.

Além de boas histórias, a noite do dia 16 de agosto ainda teve boa música e boa comida. Outras duas nordestinas – a chef baiana Morena Leite e a cantora e atriz pernambucana Giselle Tigre – contribuíram para que o público se sentisse com um pezinho no nordeste.

Paloma Amado é autora de dois livros que tratam dos pratos baianos presentes na obra do pai. O primeiro a ser publicado foi “A Comida Baiana de Jorge Amado ou o Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor”, e o mais recente é “As Frutas de Jorge Amado ou O Livro de Delícias de Fadul Abdala” . A escritora contou que trabalhou na pesquisa do material durante seis anos. Releu livro por livro e ia anotando os pratos e suas referências. Ao final dos seis anos, percebeu que tinha conteúdo suficiente para muito mais que um livro só. Com o material em mãos, foi atrás das cozinheiras famosas da Bahia para que pudessem lhe ajudar, já que ela própria não sabia preparar as comidas da terra. “Aprendi a cozinhar com a minha mãe (Zélia Gattai) e minhas tias. Então herdei a culinária da parte italiana da família, não estava acostumada aos preparos baianos”, contou.

Dona Canô, mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, e Dadá são algumas das cozinheiras consultadas para o livro. “O doce de laranja de Dona Canô era o preferido de papai”, lembrou Paloma. Nesse caminho de transcrever as receitas, a escritora relatou uma certa dificuldade cômica. “Quando eu ia conversar com Dona Canô ou com Dadá, elas me diziam inocentemente: ‘bote aí: tempero de muito’. E eu questionava: mas Dadá, quais temperos? E ela: ‘Mas como quais, minha filha? Coentro, oras. E tudo mais que usamos aqui na Bahia’. As proporções também foram um empecilho. Dona Canô me dizia: ‘anote aí: um maço de coentro se for da Feira de São Joaquim. Da Feira de Curtume é preciso dois maços’. Era muito divertido!”, contou Paloma.

Nos dois livros, a escritora garantiu que as receitas são práticas e fiéis às relatadas por Jorge Amado nos seus livros. No caso da obra “Gabriela, Cravo e Canela” (http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/4060557/gabriela-cravo-e-canela/), as receitas não apareciam detalhadas no livro. Já em “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/2230210/dona-flor-e-seus-dois-maridos/) elas estavam lá, assim como em “Tieta do Agreste” (http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/2631901/tieta-do-agreste/).

Em meio às histórias da família Amado, a chef Morena Leite foi preparando um prato típico da Bahia: Moqueca de Aratu (caranguejo) com Farinha de Biju. A trilha sonora também acompanhou o paladar, Giselle Tigre selecionou algumas músicas que falavam desse prazeroso ato de comer: “Que nem jiló”, de Luiz Gonzaga; Vatapá, de Dorival Caymmi; Cheiro de Saudade, de Alceu Valença, entre outras.

No ensejo da canção de Caymmi que era muito amigo de Jorge Amado, Paloma contou uma história engraçada: Jorge alegava que a receita de vatapá de Dorival estava errada, que não era feito com fubá como estava na letra. “Mas quando perguntaram a papai se ele já havia dito isso ao amigo, ele sempre dizia: ‘Claro que não, você acha que eu vou corrigir uma letra do Caymmi?’”, contou Paloma. A chef Morena Leite então esclarecu o mistério e explicou que na Bahia há três formas de preparo dp vatapá: com fubá, com farinha de mandioca e com farinha de pão.

Muitas outras delícias baianas ainda foram lembradas pela filha do escritor. A Galinha Cabidela, que é o primeiro prato que Gabriela cozinha para o turco Nacib em Gabriela, Cravo e Canela, era um dos pratos preferidos de Jorge, segundo Paloma. Também conhecida como Galinha ao Molho Pardo, esse prato é feito com o próprio sangue da ave e André Boccato, chef e curador do espaço Cozinhando com Palavras, lembrou que atualmente é um prato proibido pela Anvisa, pelas condições de preparo.

“Todos os pratos que papai mencionava nas obras tinham um significado relevante. A comida sempre dava o tom que ele queria nas cenas. Em Dona Flor e Seus Dois Maridos, por exemplo, Dona Flor serve Moqueca de Siri Mole depois que Vadinho morre. O siri mole é uma etapa de crescimento do crustáceo em que ele está trocando de casca. Então ele fica fica bem suculento, mas mantém uma crocância. E tem tudo a ver com a descrição da cena em Dona Flor”, explicou a escritora.

Paloma também contou que o pai gostava muito do Arroz de Alçar, um prato com heranças do norte da Nigéria e que ele conheceu por meio de sua mãe, que morava no sertão. Outra herança sertaneja é a Galinha de Parida, que leva essa nome porque era uma refeição para dar “sustança” às mulheres que acabavam de ter filhos.

Apesar da fartura de comida, Paloma falou que a família não tinha um ritual específico para a hora das refeições. “Não escutávamos música, nem nada parecido. Era apenas uma ‘falação’ sem tamanho. Mas todos tinham que se sentar à mesa juntos e saírem satisfeitos. Mesmo quando papai começou a adoecer e teve que ficar hospitalizado, não deixamos de cumprir essa tradição de nos reunirmos, pois sabíamos que ele ficaria contente com isso, mesmo distante”, contou.

Outra bonita história da família tem a ver com o título do seu livro mais recente, “As Frutas de Jorge Amado ou O Livro de Delícias de Fadul Abdala”. Quando estava hospitalizado, o médico recomendou que a convivência com um cachorro faria bem para Jorge. Mas ele se recusou a ter um novo cachorro pois dizia que ainda sentia muita falta do último que falecera. Espertamente, Paloma pediu um cachorrinho de aniversário e, como estava morando na casa dos pais na época, Jorge logo se afeiçou ao animal, que Paloma chamou de Fadul. Segundo ela, Pedro Archanjo (de Tenda dos Milagres) e Fadul Abdala (de Tocaia Grande) são os personagens criados pelo pai que mais se assemelham às características de Jorge, por isso a homenagem nos dois livros.

Ao final, antes de degustarem a Moqueca de Aratu, os convidados ainda elegeram livros e músicas marcantes em suas vidas. Giselle e Morena foram unânimes em falar da música brasileira em geral. A chef contou que gosta muito de ler sobre a história da culinária. Ela, inclusive, está lançando seu novo livro Doce Brasil Bem Bolado e tem outros publicados como Capim Santo – receitas para receber amigos  e Brasil Ritmos e Receitas.

Paloma disse que Jorge Amado era grande fã de Charles Dickens e, ela, claro, fã dos livros do pai. E ainda lembrou de uma música especial, que marcou a família. “Quando papai foi pedir mamãe em casamento, ele escolheu a música Acontece que eu sou baiano, de Caymmi. Mas como ele não cantava nada, pediu ao amigo Dorival que cantasse a música para Zélia. À medida que Caymmi cantava, ele dizia à amada: está vendo, tudo isso que ele está cantando, é como se eu estivesse dizendo para você”.

“Acontece que eu sou Baiano
Acontece que ela não é
Mas... tem um requebrado pro lado
Minha Nossa Senhora
Meu Senhor São José
Tem um requebrado pro lado
Minha Nossa Senhora
E ninguém sabe o que é (…)”