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O livreiro do Matadeiro

Nunca fui bom entendedor das leis. Sabia era essas coisas que a gente aprende com o mar, que tainha dá na água fria e que vento sul é sinal de mudança no tempo. O mais difícil foi entender o que aquela coisa que iluminava a noite tinha a ver com a água do mar que se agitava e vez ou outra chegava até a pedra e alcançava meu alicerce de madeira. Uma vez, a água entrou com força, não se intimidou com as tábuas velhas da parede da frente, quase me tirou do lugar e levou livro, panela, sapato, computador, muita coisa embora. Flutuei e voltei ao lugar. Foi aí que comecei a entender. É a maré, é a maré, ralhava o homem de cabelos brancos enquanto tentava salvar alguns pertences.

Me acostumei cedo ao escuro e a escutar o barulho das coisas. À noite, como o mar bate muito forte nas pedras, tenho calafrios, parece que trepido. Quando tudo está quieto, os grunhidos da vizinhança quase vencem o ranger das minhas tábuas velhas que balançam com o vento, mas tento silenciar o mais que posso para não atrapalhar o sono do homem que vive dentro de mim.

Também não sou bom de contar o tempo, mas soube pelas notícias do rádio que o ano que chegamos à praia do Matadeiro foi um ano agitado para o país. Falava-se num negócio de caras pintadas que nunca entendi direito. Mas o seu Eduardo gostava daquilo que escutava no radinho de pilha. Fui descobrir depois, pelos documentos guardados numa caixa da prateleira, que o nome do homem que mora em mim era esse: Eduardo Mallman. Já ouvi ele contando a jornalistas e outras pessoas que o visitam de vez em quando que antes de mim, havia um outro barraco, mais simples.

- Comecei devagarinho, com um barraco menor, pra não assustar, e agora já faço parte da paisagem.

    ‘Chegamos’ é modo de falar, porque eu vim ao mundo pelas mãos dele. Num lugarzinho no meio da trilha que liga a praia da Armação à praia do Matadeiro, concatenou que as duas pedras grandes que suportam o trilho de passagem das pessoas também serviriam de defesa contra a maré alta e levantou com as próprias mãos o barraco de tábuas de 3,25m por 3,25m. Nasci pisciano, no meio da alta temporada, e lembro como se fosse hoje quando logo no outro dia dois homens de camisa social branca engomada surgiram pelas pedras e entregaram um papel a Eduardo, que ainda arrumava as coisas dentro de mim.


    - Não adianta que eu não vou assinar nada. Só saio daqui se o governo me der garantia de casa e escola pro meu filho.

      Os senhores de branco falavam em degradação ambiental e aquilo não fazia muito sentido na minha cabeça. Quando dei pela minha existência aqui, a bica d’água, minha vizinha da direita que tinha chegado muito antes de mim, estava mirrando. Mas não deu muito tempo e o homem que mora dentro de mim trouxe-a de volta à vida. Junto com o nascer do sol, todos os dias, ele desce até a areia e recolhe o lixo. O pessoal que visita a praia já sabe que ele também faz coleta seletiva e reciclagem, além da composteira com o lixo orgânico.

      Já ouvi ele contar muitas vezes com indignação e um pouco de sarcasmo que responde a um processo ambiental desde 2008 e já acumula uma dívida de mais de 250 mil reais. Ele sempre ri, tentando desdenhar de tamanha blasfêmia, e completa a história dando detalhes do processo. Lembra que numa das audiências do processo, se sentou numa mesa no fórum que tinha uma área maior que o seu barraco.

      - Vê se pode uma coisa dessas? Além de degradação, sou acusado de ter interesse na expansão imobiliária do lugar. É um absurdo! Quero apenas ser reconhecido como zelador vitalício daqui.

      No começo, desconfiei que ele fosse cozinheiro. Arrumou uma panela grande, improvisou um fogão e fervia umas espigas de milho. Mas logo percebi um movimento de troca: as pessoas chegavam, se apoiavam numa testeira improvisada como balcão na janela que se abria de frente pra praia, lhe davam alguma coisa e ele entregava um milho. Depois, junto com as espigas, ele trouxe também umas latas, e percebi que se tratava de algum tipo de comércio. Só algum tempo depois ele conseguiu fazer o que realmente gostava.

      Eduardo foi trazendo para dentro de mim uns calhamaços de folha que eu não sabia direito para o que serviam. Foi erguendo pilhas nas paredes do fundo e como elas não deram conta, teve que construir prateleiras e espalhou-as pelas laterais do barraco. Logo percebi que aqueles calhamaços contavam histórias porque as pessoas chegavam e já pediam pelos nomes. Lembro até hoje que um tal de Rubem Fonseca foi a primeira história que ele vendeu.

      Os livros o fazem companhia desde pequeno. A mãe, que era grande leitora, o incentivava ao hábito e ele então começou a comprar e emprestar livros aos amigos. Como não voltavam, passou a vendê-los, para não ter preocupação. Se essa fosse uma daquelas histórias bonitas que se lê nesses livros clássicos que ocupam minhas prateleiras, eu até poderia dizer que Eduardo é como o personagem de um de seus autores preferidos: o Homem do Subsolo, de Dostoiévski, sozinho e pessimista. Mas ele escolheu a vida eremita como se sentisse que só assim seria capaz de reconstruí-la. Buscou na solidão e nos rostos desconhecidos o sentido da sua existência.

      Logo que ele chegou aqui, havia também uma criança, um menino. E não entendi muito bem quando ele foi embora algum tempo depois. Mas, ouvindo alguns relatos aqui e outras conversas acolá, a história toda foi fazendo sentindo.

      Filho de pai alfaiate, Eduardo ainda seguia a tradição da família quando o governo federal bradou aos quatro cantos do país “Plante que o João garante”. Largou tudo em Porto Alegre, juntou as economias e foi rumo a Roraima, para participar do projeto agrícola proposto pelo governo João Goulart que previa ajudar pequenos agricultores a plantar de forma ecológica com a supervisão de agrônomos recém-formados. Passou três anos em Roraima, no lugar onde hoje é a reserva indígena Raposa Serra do Sol, na fronteira com a Venezuela e a Guiana. Mas junto com as teorias furadas do projeto agrícola, também afundou seu casamento. Voltou, então, para o sul trazendo o filho, passou pelo Matadeiro e se encantou. Disse é ali, o amigo ah, não vai dar, não vai dar. Vaaaaai. Vão te expulsar, mas eu vou tentar, vamos ver quem é mais cabeçudo. Lá em Roraima eu já fui engambelado pelo governo e agora aqui em Florianópolis de novo? O estado vai me perseguir?

      Quando olho pra dentro de mim, vejo alguns mundos bem diferentes. No fundo, escondida atrás dos livros, a cama estreita de caixote disputa lugar com alguns pertences pessoais distribuídos em um banco e uma prateleira pequena à direita. Na cabeceira da cama, algumas tábuas de madeira deram lugar a telhas de acrílico, por onde a luz da manhã entra. Já escutei inúmeras vezes Eduardo dizer que precisa refazer a fiação.

      - Esse barraco.... é a providência que me protege, viu. Só gambiarra e tudo grudado com durex.

        A energia, puxada por um gato, como se costuma dizer, só funciona à noite. Durante o dia, a temperatura da geladeira onde ficam as cervejas e refrigerantes é mantida com o gelo da noite. Uma porta nos fundos abre quase na encosta do morro. Só há espaço para algumas caixas e um vaso sanitário improvisado ali, a céu aberto, na terra. Na parte da frente, no meu canto esquerdo, fica o lado mais comercial. Perto da geladeira está o fogão desses tipo industrial com duas bocas, onde Eduardo cozinha o milho e ferve a água para o seu chimarrão, a cada hora. Na parede principal, Marilyn Monroe, Van Gogh e um livro renascentista são o meu cartão de visitas, logo ao lado das batatinhas Ruffles que também estão à venda.

        Domingo é único dia que fecho as portas, como o dies Dominicus. Eduardo faz um trabalho voluntário na SEOVE (Sociedade Espírita Obreiros da Vida Eterna), uma instituição espírita de apoio aos idosos. Ele trabalha na triagem das doações que a instituição recebe, mais precisamente no setor de livros, sua especialidade. É ali também uma das formas que ele têm para abastecer seu estoque. Quando aparece um livro bom entre as doações, ele tem a prioridade na hora da compra, pelo mesmo preço que vai pra loja.

        As outras formas são o garimpo nos sebos do centro da cidade, onde compra e troca volumes, além das doações de amigos.

        - Às vezes me dizem: porra teus livros tão caros! Mas não sabem o trabalho que me dá pra trazer esses livros pra cá. Além do mais, tenho que empacotar os livros por causa da maresia. Quando vou em um sebo, tiro quatro livros em duas horas, por exemplo. Eu faço seleção mesmo. Recebo até encomenda, porque sabem que eu garimpo. Isso aqui [aponta para os livros expostos no barraco] não é uma coisa convencional. Onde você pode encontrar Dumas, Truman Capote, Oswald de Andrade, Paul Austen, Kafka, Oscar Wilde? Isso é raro encontrar.

          Antes, o movimento na praia era menor e Eduardo costuma dizer que o seu negócio é um termômetro muito forte da ascensão da ‘tal da classe H pra classe E’, ironiza.

          - Os caras ascenderam economicamente, nos bens de consumo, porém a questão cultural não acompanhou. Então, tem gente que passa por aqui e acha que esvaiu da minha cabeça essa loucura, acha uma estupidez vender livros, porque na verdade não tá no universo deles. A cultura é renegada nesse país. Há um tempo atrás, essa praia era, digamos assim, mais seleta. A venda de livros, que deveria aumentar proporcionalmente com o número de pessoas que vem aqui, não aumentou.

          - Você acha que a classe mais alta lê mais?

          - Sim, siiim, sem dúvida, diz ele numa mistura debochada de sotaque gaúcho e manézinho com as vogais prolongadas propositalmente. Mas não essa classe que ascendeu agora. Essa não... essa não teve o acompanhamento da cultura, ficou pra trás. Essa consome pra cacete, mas consome nesse nível, coisas como funk ostentação. Um dia desses passou um cara aqui com três mulheres. Elas começaram a ver os livros e ele disse: não para aí não que só tem porcaria. Tu quer o que imbecil? Tu quer Sidney Sheldon, tu quer Paulo coelho? É isso que tu quer? Então realmente, só tem porcaria.

          Os turistas argentinos, responsáveis por boa parte do turismo na ilha na época de temporada, também não fogem da análise dele.

          - De cada dez argentinos, dois param. Dão uma olhadinha, perguntam se tem livro em espanhol. Ter eu tenho, mas é um García Lorca, um Marquez, Neruda, Borges. E nem sempre interessa.

          Mas Eduardo tem seu público cativo que sempre volta. Já percebi também que geralmente as pessoas passam pra comprar livros na volta da praia. Antigamente, o negócio funcionava de um jeito diferente, era uma espécie de empréstimo, aluguel de livros. Ideia revolucionária pra praia também, eu achava. Mas não deu muito certo. Aqui o tempo vira muito fácil, na mesma hora que o sol está brilhando, de repente, chuva. Aí o pessoal salva o guarda-sol, não deixa molhar o cigarro e o livro é o último a ser lembrado, vai embora pra casa na sacola junto com as bananas esmagadas.

          No fundo, eu sei que os livros são só a diversão dele. Pra viver de livros, só se eu fosse franciscano, vive dizendo. O que mais rende no fim do mês é a venda de milho. Ele não tem nenhum vício pra sustentar, parou de beber há oito anos, - bebia como uma cabra, diz - e não faz nenhuma extravagância. O gasto maior é com a internet, que lhe possibilita ler o jornal toda manhã. O telefone, que vem no combo da Vivo, o incomoda, porque sempre ligam oferecendo alguma coisa que ele se irrita facilmente. Mas é a forma com que mantém contato com a família em Roraima.

          Os dois netos, Juliana de nove anos, e Vitor de sete, ainda não me conhecem. Toda vez que Eduardo fala neles, fica alguns segundos em silêncio, como se fosse tempo suficiente para lembrar de cada peripécia das crianças que já presenciou. O menino tem muito jeito para o teatro, diz, é só incentivar, tem uma cabeça muito criativa. Dá um longo suspiro e lembra que a solidão vez em quando aperta o peito.

          As pessoas acham graça quando ele conta que não costuma tomar banho de mar, não pesca, não nada, não surfa. Não entendem porque ele escolheu viver na praia. Porque eu contemplo, diz logo, sem cerimônias. Mas esse desprendimento esconde algumas verdades que Eduardo não revela logo de cara e que lhe trazem algum sofrimento. Só conta depois de alguns dedos de prosa, com mais intimidade.

          - Levei um cagaço muito grande e acho que talvez isso me traumatizou um pouco. Um cara foi puxado pela correnteza, fui tentar salvar, mas ele morreu. Voltei com o cadáver nos braços. Mas eu vou voltar pro mar. Tô negociando um longboard pro mês de abril, já consegui uma roupa.

            Quando não está cozinhando ou atendendo os clientes, Eduardo senta-se numa cadeira de plástico acomodada perto da bica d’água e descasca o saco de milho que traz da vila. Coloca uma tábua de madeira no colo, corta as duas extremidades da espiga batendo um martelo na faca e risca a palha. Retira a parte exterior e reserva a palha de dentro para usá-la quando o milho estiver cozido. Com o milho sem casca, usa uma vassourinha para tirar os fios da espiga. O trabalho já é automático e ele vai conversando com quem passa na trilha enquanto isso. Uns pedem para guardar alguns pertences enquanto vão mergulhar, outros perguntam por palha para enrolar um beck, e há ainda aqueles que pedem indicação do melhor restaurante da praia.

            - Melhor restaurante? O último lá na praia, o Mergulhão. A comida é boa e é o mais barato. Mas não está aqui quem te falou isso hein!

              O bom humor também é o mesmo quando os clientes mais desavisados chegam e pedem: senhor, me vê uma cerveja?

              - Senhor? Quem é senhor aqui?

              - Ah, é mesmo, me desculpe, senhor está no céu.

              - Pois é, e olhe lá se estiver hein!

                Para reabastecer a despensa, ele percorre a trilha até a Vila da Armação de seis a sete vezes por dia. Pra mim, nem há tanta necessidade, mas já percebi que é uma forma dele manter contato com as pessoas nos dias que a solidão aperta. Costuma dizer com graça que os 500 metros dessa trilha são os responsáveis pelas pessoas que moram no Matadeiro não serem gordas.

                Ouvi ele dizer um dia desses sobre uma tal de prosopagnosia, que não chega a ser uma doença, mas uma deficiência que torna muito difícil reconhecer a feição das pessoas. Ele explicava que pode por exemplo, conversar com alguém num momento e passar por ela dali a uma hora e não reconhecer. Não lembra da feição, mas pode se lembrar da voz ou algum outro detalhe que marcou. Foi depois que escutei essa conversa que fui ligando os pontos. Na parte de dentro da minha testeira, próximo à janela da frente, ele escrevia com caneta colorida algumas coisas que não faziam sentido. Foi aí que percebi que eram os nomes de algumas pessoas que tinham passado por aqui.

                - É horrível isso, todo mundo me conhece aqui na vila mas o inverso não é real. Morar numa vila tem a parte boa porque eu me sinto protegido. Se algum desavisado chegar aqui e me enfiar a mão na lata, dificilmente ele vai chegar até o rio. Isso me dá segurança.

                  Às vezes, ouço ele falar em sair daqui. Fala umas coisas de ciclo que já passou e até silencio, olho pra praia pra tentar disfarçar o aperto que sinto e até faz ranger minhas madeiras velhas. Mas logo ele lembra da saudade que sente quando fica alguns dias fora e já muda se assunto.

                  Dia desses ele estava pesquisando na internet algum curso de inglês. Está planejando uma viagem a Berlim no fim desse ano, começo do ano que vem. Comentou com um cliente que quer começar agora um bom curso de inglês, pra chegar lá com o idioma bem afiado. Sei que ele tem uma boa noção de alemão, porque vira e mexe solta umas palavras, mas disse que queria aprofundar um pouco mais.

                  O que não me sai da cabeça é essa história da prosopagnosia e, então, resolvi pesquisar mais. Descobri que a doença tem dois grandes subtipos. O mais simples é a prosopagnosia adquirida, que surge quando, por causa de derrames ou ferimentos, essas áreas sofrem algum dano. Já a prosopagnosia congênita – ou hereditária – é a mais comum, e a mais misteriosa. Até o momento, a ciência só sabe que ela tem origem genética. Eduardo acha que a sua é de origem genética, já comentou que a mãe não sente cheiros e um dos seus seis irmãos é daltônico. Pra mim, embora o pinus que me reveste não me dê o discernimento suficiente de fazer julgamentos, penso que a prosopagnosia é o que o mantém firme. Quando se resolve traçar o próprio caminho e abdicar – ou ser abdicado, não se sabe – da convivência em família, é preciso achar nos rostos estranhos a justificativa para seguir em frente. E se isso não puder ser feito, há de ser inventado.

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