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M de Maria

Quando Chega de Saudade começou a tocar no rádio em 1959, João Gilberto também cantava naquele disco por sua Maria: “Pode ser que haja uma melhor, pode ser / Pode ser que haja uma pior, muito bem”. Outra Maria despontaria na família Amaral Ribeiro alguns anos depois, em novembro de 1975, já embalada pela batida da bossa-nova que escutava no quarto do irmão Otávio.

João Gilberto não foi a única herança musical. Caçula numa família com mais três irmãos, Maria Ribeiro também ouviu o violão de João Donato pela primeira vez no quarto ao lado, do mesmo jeito que Men at work, Pinkfloyd e Machado de Assis também ganharam espaço como numa osmose fraterna.

- Fui influenciada por três pessoas muito fortes na minha vida: primeiro meu pai, depois meu irmão Otávio, que é um super intelectual, professor da PUC, doutor, PHD; e também o meu primo Zé [Padilha], o diretor do Tropa [de Elite], que sempre foi uma pessoa muito inteligente.

Para absorver tudo, guardou suas referências numa mochila, jogou nas costas e foi fazer teatro na adolescência, contrariando o pai. ‘Você não é boa de obedecer, minha filha e também não é assim uma Fernanda Torres’, dizia. Do teatro, vieram os filmes. Depois, as novelas. Virou documentarista e escritora. Publicou em janeiro seu primeiro livro, Trinta e Oito e Meio, reunindo as crônicas que escreve para a Revista TPM. E acabou de lançar o documentário “Esse é Só o Começo do Fim da Nossa Vida”, sobre a banda Los Hermanos, filmado quando os acompanhou por cinco dias em cidades como Brasília, Recife e Salvador durante os shows de reencontro do grupo, em 2012. Maria também dirigiu Domingos, um longa sobre o seu grande mestre e inspirador, o cineasta Domingos de Oliveira.

Às quartas-feiras à noite, expõe suas opiniões em rede nacional, no programa Saia Justa, na GNT, ao lado de Astrid Fontenelle, Monica Martinelli e Barbara Gancia, de quem ganhou o apelido de Garota Enxaqueca.

- Ela fala que eu quero ser a Simone de Beauvoir. A Barbara tem essa teoria que eu queria ser uma intelectual francesa, que estou sempre discordando de tudo, quero contestar.

No ano passado, durante uma discussão no programa sobre os rumos do feminismo, quando percebeu que as três outras apresentadoras se posicionavam claramente a favor do tema, seguiu outra linha.

- Às vezes eu nem estou defendendo o outro lado, mas eu fico achando que é mais interessante você questionar. E aí você vai fazendo uma dialética, vai tentando chegar numa terceira via, que não é só o preto e branco. É claro que eu sei que o feminismo é importantíssimo. Mas eu, por exemplo, não gosto do Dia Internacional da Mulher. Acho preconceituoso, condescendente, não tenho o menor interesse em ser comemorada porque eu sou mulher. Soa como um prêmiozinho de consolação e eu não quero.

O prazer da discussão ficou mais claro depois do convite pra participar do programa, ela conta. Foi o lugar onde pôde entender melhor isso e exercitar. “Eu tenho muito prazer em discutir e acho que nós, brasileiros, não temos esse hábito. Aqui tem essa coisa do Homem Cordial, do Sergio Buarque de Holanda e do Roberto da Mata. No programa, por exemplo, acham que eu e a Barbara Gancia somos brigadas. A gente tira um sarro porque pensamos diferente e é muito mais interessante. Acho que o diferente te ilumina muito mais do que o igual”.

Quando engravidou do primeiro filho, João, aos 27 anos, percebeu que um novo mundo desconhecido se abria à sua frente. Pediu ajuda, foi atrás do que não sabia. Mas o sonho da maternidade perfeita mostrou as caras. Não conseguiu amamentar o filho só no peito porque não teve leite suficiente. Sofreu e fechou a guarda a tal ponto que quando alguém lhe perguntou por que não amamentava, ela disparou: sou contra a amamentação.

- Eu já tinha sofrido tanto de não poder amamentar, que não pensei duas vezes. Acho tão invasivo, tão policial essa coisa da maternidade. Esse foi um exemplo bem clássico porque várias pessoas levaram a sério que eu era contra a amamentação e eu não desminto, não. Uma pessoa que se sente no direito de me perguntar isso, sendo que não é minha amicíssima, não merece ouvir que ‘puxa vida, eu não tive leite, sofri e tal’.

Maria abraça o clichê de que a melhor defesa é o ataque sem pudores.

- Esse negócio de ser do contra, de falar pra chocar, é uma defesa. Eu sou muito frágil também, e quero me defender de gente invasiva, de gente grosseira. É uma boa peneira você falar coisas assim, só fica quem realmente me interessa.

Na orelha de seu livro, a amiga e também escritora Antonia Pellegrino, abre as portas para a trajetória íntima de Maria com as palavras, que de tão pessoal, se torna comum, ela diz. “A Maria usa o cabelo preso num coque descabelado que pode ter sido feito com cuidado ou às pressas, e isso combina com o jeito que ela leva a vida. Para ela, superficial e profundo convivem sem hierarquia”.

O livro traz crônicas de porta pra dentro, de quarto fechado com computador no colo e memória revisitada. Ela diz que é ali que aparece seu lado mais sensível, onde se sente mais exposta. Lado que as pessoas que estão sempre por perto já conhecem. “Acho que eu tenho uma delicadeza, uma fragilidade que só aparece na minha escrita”.

Foi na psicanálise que ela encontrou conforto e morada. Começou a perceber que muito do que pensava não era dela, eram opiniões do pai, do primo ou do irmão. Foi onde olhou para dentro e se conformou que não é uma boa dona de casa, tem dificuldades de jogar as coisas fora, não gosta de ir à praia, já desistiu dos brincos grandes, não tem capacidade para ler Proust e nem gosta de carnaval. Mas é um ser que encontrou a plenitude na calça jeans, como gosta de se definir.

Descontruindo Maria

Ainda criança, ouviu do pai a sentença: “você é inteligente como um homem”, coisa que soava natural na época já que a mãe havia feito faculdade, mas cuidava da casa.

- Na infância, eu achava que ser mulher era menos legal, que tinha menos oportunidade, que as mulheres não podiam falar, porque os meus exemplos mais próximos eram mulheres donas de casa e homens mandando. Acho até que muito por conta disso eu fui aceitar minha feminilidade bem mais tarde. Eu preferia ser a garota que dava opinião e não ligava pra roupa. Eu achava que eram coisas incompatíveis durante um tempo.

Depois da separação dos pais, a mãe se casou com um francês quando Maria tinha 15 anos. E se a mesa de jantar da casa já era um lugar animado com o pai que sempre incentivou as discussões, o padrasto veio para agregar ainda mais.

- Foi aí que eu peguei essa coisa francesa de ter um prazer enorme de discutir. O meu padrasto tem um humor muito francês, que nem todo mundo entende, de elogiar detonando . Mas é uma maneira extremamente carinhosa. Quando eu era casada com o Paulo Betti, por exemplo, quando a gente chegava ele falava assim: ‘E aí, meu barbudo vermelho’. Era a maneira dele dizer que era contra as posições políticas do Paulo.

Aos 23, filmou Tolerância, de Carlos Gerbase, em que fazia várias cenas de sexo. Como vinha de uma família conservadora, que tinha muito pudor, foi um choque.

- Quando vi no cinema, fiquei muito abalada. Foi um episódio que eu queria chocar a família e que eu paguei um preço, foi difícil pra mim.

Hoje, Maria é casada com o também ator Caio Blat, com quem tem Bento, de 5 anos. Usa frequentemente o Instagram para postar fotos dos meninos. Numa delas, Bento brinca com um boneco, que ele chama de filho, com a legenda: meu filho e meu neto. “Todo mundo deveria poder brincar de boneca e de carrinho”. Numa outra postagem, João, o filho mais velho, do casamento com Paulo Betti, aparece de costas, com a camisa 18 do Barcelona, de Jordi Alba. “João Betti não quis Messi nem Neymar, contribuindo de forma definitiva para a minha vasta cultura futebolística”, escreveu, sem poder negar a herança aparente.

Numa das crônicas do seu livro, em que ela fala sobre a família e as expectativas criadas, abre a guarda, sem medo do jab: ‘não sou a gênia que meu pai previu, nem a moça elegante que minha mãe educou, tampouco a intelectual que meu irmão gostaria (...) porque eu quero fazer tudo diferente. Pra depois, talvez, sem perceber, acabar fazendo tudo igual.’


É, Maria, agradeça ao Otavio pelo João Gilberto, porque ele, pelo visto, sabe bastante sobre você: “Maria Ninguém é Maria como as outras também”.

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