
A literatura peregrina e dessacralizada de Ignácio de Loyola Brandão
Ele mesmo diz que as pessoas gostam de ouvir as histórias pela própria voz do
escritor. E é exatamente isso que faz quando viaja para levar literatura aos
lugares mais improváveis do país: conta histórias. Com quase 80 anos, o escritor
Ignácio de Loyola Brandão começou suas andanças ainda nos anos 70 e chegou à
conclusão recentemente que já havia estado em todos os estados brasileiros.
Daí, surgiu a ideia de mais um livro, ultrapassando a marca dos 40 títulos na
carreira. Reuniu as crônicas que publica semanalmente no jornal O Estado de São
Paulo e deu vida ao projeto “O Mel de Ocara – Ler, Viajar, Comer”, que traz relatos
sobre os lugares em que esteve e conta sobre projetos de formação de leitores.
“Fazia tempo que eu não tinha tanto prazer em escrever um livro quanto esse”,
conta o escritor. A voz grave e acentuada – que ele prefere classificar como
‘estranha’- tempera a narração dos causos que brotam sem dificuldade da
memória apurada. Vai contando uma a uma, ordenando detalhes, descrevendo
lugares, lembrando carinhosamente dos personagens, sem perder o fio da
meada. Mais do que um bom escritor, Loyola é um grande contador de histórias.
Desses que envolve o espectador, revive cada momento que já passou, cria
expectativa e não tem pudor de lançar mão de um palavrão no meio do relato,
deixando clara sua intimidade e sensibilidade com cada ocasião.
Apesar do poder de persuasão que os bons proseadores têm, logo percebi que
nesse caso, a memória tinha lhe pregado uma peça. Sentado na mesa da sala do
seu apartamento com a simplicidade de quem está conversando com um
conhecido de anos, lembrou de muitas outras histórias de vida que o tocaram, de
situações pelas quais passou e episódios que presenciou e não entraram na
seleção do livro.
Entre peculiaridades de cada lugar visitado, comidas típicas e regionalidades,
Loyola selecionou algumas histórias especiais pra ele e ainda falou sobre a
participação na Feira do Livro de Frankfurt, no início de outubro:
O que há em comum entre todas essas histórias contadas no livro? De que
maneira elas te tocaram?
Loyola: O que me fez escrever essas histórias foi a descoberta de que em cada
ponto do país tem alguém fazendo alguma coisa, por pequena que seja. O
governo vem com plano nacional de leitura a cada ano, mas não dá em nada.
Essas pessoas que estão aí são desconhecidas, não são célebres, famosas, nem
nada, apenas professores que fazem um trabalho local. Isso é importante. Essas
pessoas é que são os heróis.
Há algumas histórias especiais para você?
Loyola: Há inúmeras, desde as mais engraçadas, de me confundirem com o
Zuenir Ventura, por exemplo, até outras gratificantes. Em Passo Fundo, no RS, eu
estava numa feira de livros, conversando com os estudantes e uma aluna me
pediu pra falar sobre o processo de criação de um conto meu que se chama “O
mistério da formiga matutina”, em que eu converso com uma formiga que estava
na mesa durante o café da manhã. Então, depois que contei essa história em
Passo Fundo, um homem veio falar comigo. Contou que estava passando e me
escutou falar de formigas, então parou. Disse que tinha nascido no sítio, não
sabia ler e escrever muito bem e não me conhecia. Perguntou pra algumas
pessoas dali quem eu era. Disseram que eu era um escritor. ‘Ele é importante?’
‘Sim, é um escritor importante’, responderam. ‘Ele é louco?’. Então me contou
que tinha uma coisa na cabeça há muitos anos que o deixava mal. Contou que foi
criado pelo tio e um dia, o tio comprou um aparelho de som e colocou no pasto
para ouvir a voz das formigas. Mas a vizinhança ficou sabendo e começaram
chamá-lo de louco. E diziam ainda que ‘ficar louco pega’. Por isso, ele se afastou
do tio. Mas agora, ao me ouvir falando da conversa com a formiga, entendeu que
o tio não era louco. Me disse que ia até o cemitério pedir perdão e me agradeceu.
Então, um texto que você escreve dentro de um apartamento em São Paulo, há
mais de mil quilômetros, vai bater em alguém lá no interior do Rio Grande do Sul.
Vale a pena escrever, mesmo se você não sabe onde vai bater. É pra isso que eu
escrevo. E quando eu tenho esse retorno penso que tenho que continuar.
O título do livro faz uma brincadeira com o famoso best-seller “Comer,
rezar, amar”. Por que o trocadilho?
Loyola: O primeiro título que eu dei era “Ler, viajar, comer”. Mas depois não quis
mais só ele, porque poderia ficar muito parecido com o outro. Quando estava na
fase de revisão, eu resolvi colocar o “O mel de Ocara”, que foi uma das coisas
mais emocionantes que me aconteceu. Foi em Fortaleza, durante a Bienal do
Livro. A secretária de cultura teve a ideia de fazer a bienal fora da bienal, que
significava ir para um bairro afastado ou para outra cidade. Numa dessas últimas
vezes que fui pra lá, estive numa cidadezinha chamada Ocara, a primeira cidade
do sertão. Quando terminou, uma das professoras me falou ‘você dessacralizou a
literatura’. Eu achei essa a coisa mais linda, o melhor elogio que já levei. Nesse
momento também chegou uma velhinha e disse que gostaria de me fazer uma
pergunta. “Como é que o senhor escreve livros?”. Aí comecei a falar do processo
de criação, mas não era isso. Ela queria saber como põe letrinha por letrinha no
papel. Aí que me dei conta que era sobre o processo de impressão. Então
expliquei da melhor maneira, ela me agradeceu e perguntou se podia me dar um
presente, porque ela tinha visto que ‘tinha coisa na vida pra ela’. Voltou com um
litro cheio de mel puro, dessas garrafas que você usa e reaproveita depois, com a
tampa de sabugo. Porque Ocara vive de mel, milho e algodão e cada casa tem no
seu quintal uma colmeia. Eu considero esse o melhor cachê que eu já tive.
Há várias crônicas no livro que trazem nomes de pratos e falam de
peculiaridades regionais da língua. Qual a importância deles nas histórias?
Loyola: Eu gosto muito de comer e em cada lugar que vou, tem uma comida
típica. A comida tem essa coisa de humanizar mais a história. Também falamos
todos o português, mas cada região tem uma linguagem própria. Em Rio Branco,
no Acre, eu peguei um táxi e fui conversando com o motorista. Eu não entendia
muito o que ele falava e num momento ele disse ‘Meu cunhado tá abraçando o
táxi’. Perguntei pra alguém o que significava a expressão e me explicaram que
não era táxi, o carro. Taxi (com pronúncia ‘tachi’), é uma árvore grande e cheia
de espinhos. Quando o cara está muito mal, desesperado, está no fim da picada,
dizem que está abraçando taxi, porque aqueles espinhos corroem ele. É lindo
isso! Como eles vão formando e reformando a língua dentro daquilo que eles
conhecem.
Entre esses muitos lugares por onde você já passou e morou, está a
Alemanha, que você visitou recentemente por ocasião da Feira do Livro de
Frankfurt. Além do reencontro com o país, foi também um reencontro com
a feira de livros, da qual você participou em 1988 e 1994. Como foi a
experiência desta vez?
Loyola: Eu morei em Berlim e sempre voltei muito à Alemanha. E essa feira, em
especial, foi bem curiosa porque estávamos lá a postos [os escritores] quando foi
divulgada a entrevista do Paulo Coelho [o escritor fez críticas à comitiva
brasileira e se recusou a participar do evento na última hora]. Eu achei uma
sacanagem porque não se fala isso de escritores que são seus colegas de
profissão. Pela primeira vez, a comitiva brasileira formada por 70 pessoas eram
todos escritores, de várias idades, várias gerações e várias regiões do país. Por
que o Paulo Coelho, do alto da sua megalomania, fez esse ataque? Ele exigia o
direito de fazer o discurso de abertura do evento, como o escritor brasileiro mais
importante. E ele não é, nem de longe. Ele esquece que ele é um escritor de
entretenimento, que é um gênero que você pode cultivar muito bem. Mas ele
jamais vai ser um Guimarães Rosa, como eu também não vou. Nem um
Graciliano, como nenhum de nós vai, nem um Machado. Cada um na sua. E sobre
o discurso do Ruffato [Luiz, na abertura], ele disse realmente como o Brasil é:
temos corrupção, ensino e saúde abandonados. Este é o país que a gente luta pra
melhorar e dentro dele fazemos literatura.
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